Autor

David Duarte

27 de 05 de 2023, 08:04

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 14 de Agosto de 1984 (continuação)

O ideal está dentro de nós. Não o procuremos nem no mundo inteligível, platónico, nem em exóticas paisagens, basta-nos um canto limpo, claro, mais ao norte ou mais ao sul, mas aqui, na finitude do nosso ser e nos limites deste mapa a molhar-se de mar

E continuou até o fim o poema da Alberto Caeiro. E leu ainda outros, que eu acompanhei. Mas disse-lhe que para apreciar estes versos, se calhar é preciso mesmo dar a volta ao mundo da literatura. É como partir em viagem em busca de um ideal, para afinal descobrirmos que tínhamos deixado o ideal em casa. As voltas que temos de dar para a aprendizagem da simplicidade! Ela concordou. E deu um exemplo, agora na música. Colocou um disco de Mozart, o concerto para piano nº 21, no segundo andamento. Depois, comentou os caminhos que andou para poder escutar, mas escutar mesmo com todo o espírito, este pedacinho de céu que o músico se esquecera de levar consigo ao partir. Disse que há poucos anos nem daria por ele, embora o não desprezasse. Mas recuando um pouco mais no tempo, e aquela música soar-lhe-ia até como enfadonha.
Não resisti a exclamar que ela era maravilhosa. Que companheira eu não teria perdido, se a minha leviandade tivesse sido mais forte que o amor. Riu-se ela, ao dizer-me que eu nem calculava a origem daquelas reflexões. Andava de manhã às compras com a mãe, o que já não fazia há uns dez anos, quando percebeu quanta beleza se concentrava naquele ato tão simples de percorrer as bancas da feira, atenta aos cheiros dos legumes, à cor da hortaliça, ao aspeto da abóbora, à qualidade da fruta.

16 Agosto 1984

E as férias terminaram. A Fátima este ano, abdicando de uma parte do que ganharia com menos dias de descanso, achou seu dever visitar os pais. Fez bem. Embora compreenda a sua intenção de resolver o mais depressa possível o problema dos empréstimos, para o regresso definitivo a Portugal. Mas encontrar-me com ela na nossa terra, ao fim de tantos anos, foi uma experiência singular. E a viagem a Marrocos também valeu. Percebemos que nos basta Portugal para nossa pátria. Não precisamos de procurar lá fora o sentido das nossas vidas. O ideal está dentro de nós. Não o procuremos nem no mundo inteligível, platónico, nem em exóticas paisagens, basta-nos um canto limpo, claro, mais ao norte ou mais ao sul, mas aqui, na finitude do nosso ser e nos limites deste mapa a molhar-se de mar.