Autor

David Duarte

31 de 07 de 2021, 07:55

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 25 de Agosto de 1976 (continuação)

De dia, fazíamos compras para as refeições, coisas simples, que não dessem trabalho

Os nossos dias foram uma dádiva terrestre. Não porque algo de extraordinário se tivesse passado. Não. Mas havia uma dimensão poética, uma harmonia, um toque singular em todo o ato que fazíamos juntos. Sobretudo, uma alegria no modo como se vivia cada gesto, como se dava cada passo. Quase todos os dias íamos à praia, de autocarro. Mas tarde, à hora em que as pessoas começavam a regressar. Mal chegávamos à Costa da Caparica, descobríamos a criança que permanecia em nós nas brincadeiras na água, nos carinhos na toalha, no riso e no sorriso com que encarávamos os pequenos nadas da vida. Ir à praia nunca foi tão divertido, se suspender da memória alguns momentos inesquecíveis de infância. Era isso, o regresso da infância uns dezoito anos depois.
De dia, fazíamos compras para as refeições, coisas simples, que não dessem trabalho. Uma sopa dava-nos para três dias, e tínhamos queijo, pão, fruta e pouco mais. À noite, pelo vento ameno que corria de algures, sentávamo-nos numa esplanada a beber umas cervejas. Bebíamos duas, três, e vínhamos embora, ainda menos sérios que o habitual. Mas apreciávamos aquela leveza que nos levantava quase dos passeios, só nós sabíamos o que nos esperava em casa, nenhuma obrigação, nenhuma norma a cumprir, nenhuma satisfação a dar a quem quer que fosse. Mal a porta se fechava, e a festa começava. A roupa tirada e caída onde calhasse, as carícias trocadas, e não nos importava que fosse a cama, um tapete ou o sobrado de madeira o lugar de eleição do nosso amor. Depois, a conversa tomava conta de nós e falávamos de nós, da vida, do sentido existencial, do futuro. Por vezes, tinha a perceção de que a Fátima me queria dizer algo. Não sei, talvez engano meu. Mas a verdade, penso eu agora, é que parecia que uma palavra, uma frase, se lhe apertava na garganta. Na altura, interpretava aquele seu jeito como expressão do afeto. Deveria tê-la interpelado.
Ocorria também escrevermos poesia, a dois. Um iniciava uma frase ou duas, o outro estabelecia um nexo com a anterior, outras vezes, rompia-se com a lógica e inventava-se algo inesperado, e assim sucessivamente. A Fátima apreciava este jogo, era a sua descoberta do poder das palavras, da sua polissemia, da sua poética. Hei-de transcrever alguns dos resultados dessa construção a dois.
Por fim, adormecíamos. Só nos levantávamos ao meio-dia. Nunca depois do meio-dia, isto pedia a Fátima por um qualquer raciocínio supersticioso que nunca compreendi muito bem. Ela achava, numa explicação por alto, que depois daquela hora seria como que o desperdício de um dia.