Autor

David Duarte

23 de 07 de 2021, 22:49

Lifestyle

Fragmentos de um diário - 11 de Agosto de 1976 (continuação)

Ao dizer as primeiras palavras, ela referiu-se sobretudo à tristeza dos últimos tempos de ausência

Já estamos no apartamento de Almada. Viemos de barco. Uns oito minutos depois do desembarque entrámos num prédio relativamente novo, e subimos a um segundo andar. Pousei a mochila no corredor, mas a Fátima pediu-me que a levasse para o quarto, para onde também levou a sua. Agora que escrevo, de noite, enquanto ela arruma a nossa roupa, com uma certa ordem, num guarda fato, nem sei como descrever o tipo de atmosfera que se concentrou nos primeiros momentos da nossa chegada. Olhávamos um para outro, finalmente sozinhos, e era tal a densidade interior de cada um que algo nos paralisou por instantes. E, ao contrário do que eu imaginara enquanto durante a travessia do Tejo olhávamos quase em silêncio Lisboa a distanciar-se, não foi o sexo que primeiro nos atraiu.

Ao dizer as primeiras palavras, ela referiu-se sobretudo à tristeza dos últimos tempos de ausência, em que a descrença lentamente abria sulcos na sua alma. Confessa que havia nela um impulso para a fé no nosso amor, que achava que a nossa relação não poderia simplesmente diluir-se no vazio, sem mais nada, uma palavra, um gesto, um encontro. Mas essa palavra não vinha, o gesto não surgia, o encontro não acontecia. E sem poder escrever uma carta, sem receber nenhuma.

Às vezes, aproximava-se da minha tia na fome de uma informação, de uma notícia, de um sinal. Chegara a perguntar por mim, mas ela respondeu-lhe que há muito que não sabia de quase nada, apenas que eu estudava em Viseu e que os meus pais andavam aflitos com a vida. Teve vontade de se meter no comboio e ir ao meu encontro. Se não o fez foi sobretudo por medo de me descobrir descomprometido do nosso amor. Quando ela se interrompeu, também lhe contei do meu desamparo interior.

É verdade que fazia coisas, que me ocupava disto ou daquilo, mas sem convicção, fazia por fazer, como doente que se alimenta apenas porque tem que ser. E, abraçados, chorávamos, como dois velhos, como duas crianças, na verdade, como duas pessoas que se pensavam perdidas e se reencontravam por inesperada fortuna. E só depois do desabafo, só depois de termos a certeza que éramos mesmo nós que ali estávamos e que não se tratava de um sonho, é que a palavra cedeu à solicitação dos sentidos. Lentamente, como se abríssemos um baú há muito esquecido, e, com cuidado e um ardor contido, se começasse a mover o seu conteúdo, assim fomos nós redescobrindo os caminhos da sensualidade e do desejo. Caiu a tarde, acendeu-se a noite, não demos pela passagem do tempo, levados por um arroubo roubado aos deuses.

Pergunta-me o que escrevo eu tão arrebatado. Viro o caderno para ela, que se aproxima e lê a meia voz. No fim, faz-me um elogio. Eu agradeço.