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Ainda não somos uma pós-democracia

 Ainda não somos uma pós-democracia
01.04.21
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 Ainda não somos uma pós-democracia

Escrevo estas linhas em resposta a um desafio de um grande amigo. Trata-se aqui de refletir sobre a importância que deve ser atribuída pela agenda das políticas governamentais aos ecos de uma aparente agenda pública vertida nas redes sociais online. Em termos menos duros, menos teoria do agendamento, a ideia é tentar perceber qual a importância das opiniões nas redes sociais para a ação governativa das nações. A resposta parece-me imediata: acredito que tais opiniões não devem ser motivo para tomadas de decisão, nem pesarem mais do que qualquer outro elemento de ação política, sob pena de total erosão da lógica governativa. Afirmo-o por estar convicto da vulnerabilidade da precisão dos dados de análise dessas opiniões. Afirmo-o pelo estado da arte das ações deliberadas nas redes sociais.
Quando sabemos que, através das redes sociais online, a Cambridge Analytica manobrou milhões de cidadãos norte-americanos e britânicos de forma a servir resultados políticos como a eleição de Trump ou a concretização do Brexit, temos de duvidar da representatividade desses universos. Quando Bolsonaro investiu milhões de reais em comunicação no WhatsApp dirigida a populações visivelmente pouco esclarecidas, temos de duvidar do papel democrático das opiniões nessas redes. A estratégia dos candidatos populistas tem passado pela criação de milhares de contas fantasma, bots que publicam e interagem automaticamente. Também as últimas eleições presidenciais portuguesas serviram comprovadamente de campo de ensaio para as mesmas estratégias promovidas pela extremadireita xenófoba, nomeadamente através da criação de milhares de perfis falsos, entre outros esquemas ardilosos. Milhares de falsos cidadãos que não podem ter voz, sob circunstância alguma, mas que criam a ilusão de engrossar as hostes populistas.
Um dos princípios da nossa democracia reside na ideia de cada cidadão ter acesso a um voto, a uma voz. Nas redes, ele pode criar milhares de vozes falsas em poucos minutos. Outro princípio da democracia afirma que existem locais próprios para a tomada de decisão; lugares onde a representatividade está garantida, onde as regras do respeito pelo debate aberto são escrupulosamente monitorizadas. São as assembleias (de freguesia, municipais, da república), são as urnas de voto, são as petições, são os movimentos associativos de cidadãos, são os partidos políticos. Penso que trazer as redes sociais para esta arena, assumindo-as ingenuamente como espaço democrático pode fazer resvalar definitivamente as democracias. Tentar encontrar opinião pública nas caixas de comentários das notícias ou nas redes sociais, será um exercício condenado ao fracasso. Acresce ainda a essa visão ingénua o agravamento da replicação automática de conteúdos das redes sociais por pseudo-jornalistas de copy-paste que envenenam assim a agenda mediática com pós-verdades, falsidades, rumores. Esse é um artifício que só se pode resolver com a melhoria do trabalho jornalístico. Com a sua edificação e respeito pelos seus profissionais. De outra forma, o trabalho jornalístico estará sempre ensombrado pela dúvida da sua validade, obrigando os governantes e o público a duvidar constantemente.
O lugar certo das redes sociais está no entretenimento e na venda de publicidade. Se delas eventualmente surgirem associações de cidadãos que saem à rua ou elaboram petições, tanto melhor. Deverá ser a essas associações e petições que os governantes deverão atender, cumprindo-se o melhor possível aquilo que uma democracia representativa tem de melhor: a possibilidade de todos serem parte do contrato social.
A ação política deve suportar as suas auscultações do sentir da população a partir da população e não do resultado de códigos binários duvidosos. Deve partir das mesas de voto, dos organismos públicos e dos contactos recebidos diariamente, das associações, das petições, das manifestações, da comunicação social quando se revela merecedora dessa posição, das sondagens e de toda a comunicação estabelecida por cidadãos reais, não confundíveis com programas informáticos.

 Ainda não somos uma pós-democracia

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