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Na montra discreta da loja Casta CBD, bem no coração de Viseu, repousam frascos de óleo, flores secas, chás com nomes serenos e cremes terapêuticos que despertam a curiosidade de quem passa. Para quem ainda associa a palavra “cannabis” a uma rebeldia ou ilegalidade ou até ao estigma dos anos 90, esse cenário pode parecer distante. Mas ali, entre os expositores iluminados e o aroma leve do cânhamo, sente-se uma mudança de mentalidade a acontecer. Mas a discussão vai além do CBD: e se a legalização do uso recreativo da cannabis estivesse mesmo à porta?
Viseu já está a viver o início de uma mudança de mentalidade
Portugal, embora seja pioneiro na descriminalização das drogas desde 2001, ainda não deu o passo da legalização total do consumo adulto de cannabis. Medicamentos à base da planta são permitidos, sim, sob a Lei n.º 33/2018, mas fumar um cigarro de cannabis fora do contexto médico ainda é ilegal — apesar de não ser considerado um crime. E é nesse intervalo entre o legal e o estigmatizado que Paulo Marques construiu o seu negócio e a sua voz.
“O panorama atual é muito diferente daquele existente há 5 anos, quando começámos. Na altura era tudo novidade, havia pouca informação disponível, e até as regras eram pouco explícitas. Quem arriscava começar uma loja, era com gosto à planta e a este mundo, mas também muito devido à confiança que o CBD nos trazia”, conta Paulo Marques, dono da Casta CBD. “Nos dias de hoje esse caminho sofreu muitas derivações. Com lojas (pessoas) a abrir sem qualquer conhecimento sobre a planta, com a introdução de vários sintéticos e semissintéticos no mercado, algo que nunca apoiámos nem comercializamos.”
Segundo o proprietário do espaço, a chegada de lojas sem formação adequada, e até de franchisings internacionais, trouxe produtos sintéticos e de baixa qualidade ao mercado. “Inicialmente, assistimos claramente a uma forte curiosidade, que ainda se mantém. Mas com o passar dos anos e com a disponibilidade de mais informação, as pessoas começaram a adotar o CBD como qualquer outro suplemento, benéfico para a sua saúde. E assistimos muito também a quem faz a caminho para deixar de consumir tabaco ou marijuana, substituindo-o por CBD, pelo maior bem-estar que este produz.”
Mas a ambiguidade legal é o maior desafio: “a lei portuguesa (ASAE) diz que podemos vender produtos derivados do cânhamo, desde que o nível de THC seja inferior a 0,03%. Mas na “outra mão” informa que qualquer produto alimentar, comestível ou líquido, está proibido de conter CBD”, explica Paulo Marques.
Na Casta CBD, a decisão foi clara: não arriscar. “Optámos por não disponibilizar aos clientes produtos alimentares com CBD para evitar contra ordenações.”
No meio das incertezas legais e dos preconceitos ainda enraizados, a Casta CBD resiste com serenidade. Mais do que uma loja, tornou-se um ponto de encontro entre o conhecimento, a curiosidade e o cuidado. Com o olhar atento de Paulo Marques e a dedicação à qualidade, o espaço em Viseu é um pequeno exemplo do que pode ser um futuro mais consciente, legal e respeitador da liberdade individual. Ali, cada produto é escolhido com critério, cada cliente é ouvido com atenção, e cada conversa ajuda a desconstruir ideias feitas sobre a cannabis.
Um debate que aquece em Lisboa, ecoa já em Viseu
Em setembro de 2023, o Partido Socialista anunciou que levaria o debate sobre a legalização da cannabis recreativa ao Parlamento. Em maio de 2024, o Bloco de Esquerda formalizou essa intenção com uma proposta de lei. A ideia é clara: tirar a cannabis do mercado negro, regulamentar a produção e distribuição e proteger os consumidores. Um modelo semelhante ao que a Suíça começou a testar e onde os primeiros resultados apontam para uma redução nos casos de consumo problemático.
Paulo Marques, apesar de não se posicionar politicamente, vê na regulação uma forma de resolver muitos dos problemas que hoje persistem. “A legalização seria benéfica para todos. Com regras progressivas. Para o estado, que ia arrecadar milhões em impostos. Para as lojas que passavam a vender um produto com qualidade assegurada. E para o consumidor, que deixa o mundo obscuro e perigoso do tráfego e sujeitasse ao que lhe colocam nas mãos. Muita das vezes prejudicial para a sua saúde. O problema aqui, que é falado há anos, são os lobbys. Neste caso, a indústria farmacêutica à cabeça e as grandes multinacionais de cultivo de marijuana, que utilizam o nosso país apenas para cultivar e exportam 99,99% do produto para o estrangeiro.”
Do discurso à proposta: o modelo do Bloco de Esquerda para a legalização
As palavras de Carlos Couto, 37 anos, representante do Bloco de Esquerda em Viseu, refletem uma visão estruturada e pragmática. Longe de qualquer romantização da cannabis, o representante do Bloco de Esquerda aponta para a necessidade da coerência legislativa. Portugal, afirma, “foi pioneiro nas políticas de discriminação de consumo de drogas”, mas vive hoje preso num paradoxo: descriminaliza o consumo, mas não permite o acesso legal ao produto.
“Perante isso, a proposta que o Bloco faz sobre a legalização da canábis tem toda a importância, porque pretende regulamentar, ter o controle sobre a qualidade, reduzir os riscos associados aos consumos, retirar da mão do crime organizado o controle sobre esta droga e acabar com o paradoxo de que não é crime consumir, mas não se pode de maneira nenhuma legal ter acesso ao produto.”
A proposta do Bloco, como explica Carlos Couto, vai muito além da simples legalização — ela aposta num modelo controlado, progressivo e responsável.
“A proposta apresentada no ano passado na Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda está em linha com aquele que é um modelo já implementado na Alemanha e em Malta, um modelo que respeita os tratados que estes países e também Portugal estão vinculados. A proposta prevê a criação de associações de cultivo com um máximo de 500 sócios que poderiam dispensar estas associações um máximo mensal de produto desta droga por sócio. Ou seja, há limites, há uma regulamentação. O projeto previa ainda a autoprodução até 3 plantas para cada consumidor. Além de resolver este problema, que é de onde é que vem o produto e retirá-lo dos circuitos internacionais de tráfico, resolvia o problema da posse, ou seja, esta dualidade de se poder consumir, mas não se poder a ter aquilo que se consome. Ou seja, a posse na via pública poderia passar a ser legal para as 25 gramas.”
O projeto previa várias formas de combater o tráfico e resolver uma questão importante, sobretudo face à dualidade entre o consumo e a posse.
“O projeto prevê ainda a autoprodução até de três plantas para cada consumidor. Além de resolver este problema, que é de onde é que vem o produto e retirá-lo dos circuitos internacionais de tráfico, resolvia o problema da posse, ou seja, esta dualidade de se poder consumir, mas não se poder ter aquilo que se consome. Ou seja, a posse na via pública poderia passar a ser legal para as 25 gramas.”
Carlos Couto sublinha que a “cannabis é a droga ilegal mais consumida em Portugal e no mundo”. E é aqui que se estabelece o elo direto com realidades como a da Casta CBD, em Viseu, um espaço que já hoje prova que é possível falar de cannabis com responsabilidade, com conhecimento e sem medo. Para o membro do Bloco de Esquerda, normalizar o consumo não é incentivar, mas sim proteger. Os dados, reforça, mostram que a legalização regulada não aumentou o consumo nos países que a implementaram. Pelo contrário: permitiu políticas de redução de riscos mais eficazes, acesso a produtos de qualidade e maior transparência para o cidadão. Carlos Couto espera já o passo seguinte:
“Acho que está na hora de dar o passo em frente e testar um modelo que deixa de estigmatizar os consumidores, que lhes permite ter acesso à qualidade controlada, que permite, como já disse, benefícios naquilo que é a segurança e saúde pública, que retira os consumidores destes mercados internacional de tráfico e que é um modelo onde não há margem, onde não há apelo ao consumo, mas que dignifica as pessoas e que acaba com este modelo onde as pessoas podem consumir, mas não podem ter canábis para consumir.”
Portugal: maior exportador, mas com consumo travado
Portugal é hoje o segundo maior exportador mundial de cannabis medicinal, com previsões de mais de 32 toneladas exportadas em 2025. No entanto, o país que cultiva legalmente, ainda proíbe o consumo da planta para fins recreativos dentro das suas fronteiras. E enquanto o debate político se desenrola em Lisboa, cidades como Viseu já vivem o reflexo dessa ambiguidade.
Muitos usam o CBD como alternativa para tratar ansiedade, dores crónicas ou mesmo para deixar de fumar tabaco ou marijuana ilegal. Paulo Marques sente-se revoltado: “a sociedade aceita que um adulto publicamente se embebede, e muitas vezes arranje vários tipos de confusões, fume tabaco que comprovadamente prejudica a sua saúde e dos que o rodeiam, mas se alguém estiver a fumar uma planta para relaxar, ter uma boa noite de descanso, tirar dores crónicas, baixar o nível de ansiedade e tem logo o dedo apontado e vários nomes ofensivos proferidos. A mentalidade tem de ser mudada, a bem de uma sociedade mais tolerante e compreensiva”.
Um futuro (quase) ao alcance
Com a discussão política a avançar e exemplos internacionais a inspirar, a questão que se impõe é: estará Portugal finalmente pronto para legalizar o uso recreativo da cannabis?
Se depender de comerciantes como Paulo Marques, consumidores informados e vozes políticas progressistas, como Carlos Couto, a resposta é sim. Com regulação séria, educação pública e combate ao estigma, o país poderá dar um passo histórico, consolidando a sua posição como pioneiro mundial na política de drogas, defendem as vozes que se posicionam a favor da legalização. Enquanto isso, em Viseu, a conversa continua. No aroma discreto do CBD, nas prateleiras de uma loja comprometida com a legalidade e qualidade, na esperança de que um dia, a planta possa deixar de ser tabu e tornar-se escolha.
*Alunos de Comunicação Social da Escola Superior de Educação de Viseu