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Aquilo emocionava-me tanto, ali deitado ao lado do meu amor a ler poesia, que a excitação explodia num desejo cego, interrompendo-lhe a leitura, para que os nossos corpos também expressassem a sua linguagem. Depois ela continuava, por insistência minha. Ambos gostávamos muito da obra Heinrich von Ofterdingen, em que um jovem poeta busca uma enigmática flor azul. A Fátima murmurou-me ao ouvido que eu era a sua flor azul, a flor que desde pequena mal se atrevia a pensar que poderia encontrar. Eu respondi-lhe que ainda a não encontráramos, ainda só pressentíamos o seu perfume. Mas que ela existia, dentro de cada um de nós, prestes a desabrochar em plenitude. Ela dizia que este romantismo do ideal acendia-lhe na alma um desejo tão profundo de verdade, que não se importaria de passar os dias mergulhada nestas leituras. Muito embora, sozinha, só lhe desse vontade de chorar.
As nossas noites eram consumidas neste fogo de poesia e de amor. Vividas até à exaustão dos corpos e ao entorpecimento dos sentidos. Adormecíamos agarrados, convictos de que um anjo velava por nós, tão próximos estávamos de tocar a pele imaterial dos deuses.
Ela acordava ao toque do despertador. E raras vezes a via de manhã. Eu tomava o pequeno almoço e saía pela cidade. Um dia, em frente à entrada da catedral, mais uma vez parado a contemplar a escultura do julgamento final, com os pecadores de um lado, e os justos, vestidos de branco, do outro, tive uma espécie de epifania e vi descido das alturas um anjo enigmático, misterioso, de asas transparentes num voo planante sobre a cidade. Senti-me tão bem com a suposta visão, que se escrevesse que parecia que os meus pés andavam sobre nuvens, poderia ser interpretado literalmente.
À noite voltámos ao nosso Novalis. Ela, traduzindo de imediato para português: «Sonhamos com viagens através do Universo – mas não estará o Universo dentro de nós? Não conhecemos as profundezas do nosso espírito – para o interior segue o caminho misterioso». E continuou: «Toda a descida em nós mesmos – todo o olhar para o interior – é, simultaneamente, uma subida – uma vista para o verdadeiro exterior».
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Clara Gomes - pediatra no Hospital CUF Viseu
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