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Fragmentos de um Diário – 16 de Maio de 1985 (continuação III)

 Fragmentos de um Diário - 16 de Maio de 1985 (continuação III)
04.09.23
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 Fragmentos de um Diário - 16 de Maio de 1985 (continuação III)

Ela só exclamou que deveria ter sido terrível! Mas, irónica, perguntou-me como conciliava eu esse amor com a infidelidade. Porque, segundo ela, eu sou descaradamente infiel. Confessei-lhe que era o meu pecado. Esclareci, no entanto, que o pior não era estar com ela, agora ali e noutros momentos do passado, não, o mais grave é a minha impotência ética face à sedução impulsiva por algumas mulheres. Ela quis saber por que a excluía do campo da infidelidade. Disse-lhe que estava com ela por afeto, não por sexo. Mesmo que nada houvesse, seria um prazer estar com ela.

Ela retorquiu, meio a brincar, que eu sabia mentir de um modo amoroso. Disse-lhe que não brincava. Aprendera, desde os catorze anos, com um poeta, Fernando Pessoa, que há vários eus dentro de nós. Ele designava-os heterónimos. Eu não sei como qualificá-los. Mas reconheço em mim várias identidades. Ela pediu-me exemplos. Eu procurei dizer-lhe que reconheço por vezes uma inclinação para ser pastor e que amaria ser guardador de gado, sozinho por altas montanhas, que me reconheço um amante fiel, capaz do maior sacrifício por amor de uma mulher, mas também sei do meu eu tantas vezes conspurcado de cio, impotente de qualquer controlo, que reconheço em mim um místico capaz de se isolar numa cela por tempos indeterminados, mas também me confesso pecador de uma boa parte das tentações. Ela riu-se, descontraída e bem disposta. Disse-me que dispensava o pastor, o místico e o pecador. Quanto a ela, acha que é mais simples do que eu. Só deseja ser feliz. E para ser feliz precisa de ser amada, assim de uma forma absoluta, sem partilhas. Mas que para mim, abre uma exceção. E, aproximando-se mais de mim, diz-me que, pelo menos enquanto não encontrar esse amor, que eu podia vir ter com ela ou chamá-la. De manhã, representara um pouco de teatro, só para me experimentar. Mas na verdade, sentia-se feliz por poder estar comigo estes dias.

Depois fomos para uma outra zona, mais de bares, cafés e estreitas esplanadas na rua. Bebemos muito, bebemos mais do que falámos dado o ruído ambiente em que toda a gente berrava por cima da música, que varria as ruas de uma ponta a outra. Mais tarde, entrámos num táxi e regressámos ao quarto. Foi uma delícia redescobrir a jovem do castelo no seu melhor, solta, sem preconceitos, sem pudor, feliz. Só ao adormecer, me mordeu uma boca de remorso. Mas adormeci.

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