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Pedro Escada
Os nossos dias foram uma dádiva terrestre. Não porque algo de extraordinário se tivesse passado. Não. Mas havia uma dimensão poética, uma harmonia, um toque singular em todo o ato que fazíamos juntos. Sobretudo, uma alegria no modo como se vivia cada gesto, como se dava cada passo. Quase todos os dias íamos à praia, de autocarro. Mas tarde, à hora em que as pessoas começavam a regressar. Mal chegávamos à Costa da Caparica, descobríamos a criança que permanecia em nós nas brincadeiras na água, nos carinhos na toalha, no riso e no sorriso com que encarávamos os pequenos nadas da vida. Ir à praia nunca foi tão divertido, se suspender da memória alguns momentos inesquecíveis de infância. Era isso, o regresso da infância uns dezoito anos depois.
De dia, fazíamos compras para as refeições, coisas simples, que não dessem trabalho. Uma sopa dava-nos para três dias, e tínhamos queijo, pão, fruta e pouco mais. À noite, pelo vento ameno que corria de algures, sentávamo-nos numa esplanada a beber umas cervejas. Bebíamos duas, três, e vínhamos embora, ainda menos sérios que o habitual. Mas apreciávamos aquela leveza que nos levantava quase dos passeios, só nós sabíamos o que nos esperava em casa, nenhuma obrigação, nenhuma norma a cumprir, nenhuma satisfação a dar a quem quer que fosse. Mal a porta se fechava, e a festa começava. A roupa tirada e caída onde calhasse, as carícias trocadas, e não nos importava que fosse a cama, um tapete ou o sobrado de madeira o lugar de eleição do nosso amor. Depois, a conversa tomava conta de nós e falávamos de nós, da vida, do sentido existencial, do futuro. Por vezes, tinha a perceção de que a Fátima me queria dizer algo. Não sei, talvez engano meu. Mas a verdade, penso eu agora, é que parecia que uma palavra, uma frase, se lhe apertava na garganta. Na altura, interpretava aquele seu jeito como expressão do afeto. Deveria tê-la interpelado.
Ocorria também escrevermos poesia, a dois. Um iniciava uma frase ou duas, o outro estabelecia um nexo com a anterior, outras vezes, rompia-se com a lógica e inventava-se algo inesperado, e assim sucessivamente. A Fátima apreciava este jogo, era a sua descoberta do poder das palavras, da sua polissemia, da sua poética. Hei-de transcrever alguns dos resultados dessa construção a dois.
Por fim, adormecíamos. Só nos levantávamos ao meio-dia. Nunca depois do meio-dia, isto pedia a Fátima por um qualquer raciocínio supersticioso que nunca compreendi muito bem. Ela achava, numa explicação por alto, que depois daquela hora seria como que o desperdício de um dia.
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Margarida Benedita