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03 de 12 de 2022, 08:18

Cultura

Diretora dos Jardins Efémeros escreve ao ministro da Cultura para evitar “apagão”

Em causa, os apoios da DGartes. Setor em contestação

Concerto de Marco Franco nos Jardins Efemeros 2021

Fotógrafo: Igor Ferreira

A não realização em 2023 do festival multidisciplinar Jardins Efémeros, em Viseu, representa, para a diretora artística deste evento um “retrocesso cívico, social, cultural, de urbanidade e até económico”.
Sandra Oliveira lamenta que o trabalho desenvolvido na última década seja apagado com a decisão da Direção-Geral das Artes (DGartes) de não apoiar a associação que promove esta e outras atividades culturais e isto mesmo foi transmitido ao ministro da Cultura, numa carta que a criadora enviou após terem sido conhecidos os resultados dos concursos de apoio sustentado às artes 2023/2026.

“O trabalho de continuidade produzido durante mais de uma década de atividade da Pausa Possível - trabalho de extrema importância como atestam as cartas da Câmara Municipal de Viseu, do Turismo de Portugal e mais 20 entidades, locais, nacionais e internacionais apensas à candidatura - será apagado por esta decisão”, escreveu Sandra Oliveira que aguarda a reversão da deliberação em sede de audiência prévia, embora “com poucas expetativas”.

A mentora do festival disse ter ficado surpresa com a decisão do júri, estranhando que as mesmas garantias apresentadas em candidaturas de diferentes agentes culturais tenham tido, também, interpretações diferentes.

A diretora artística dos Jardins Efémeros, em conferência e imprensa aquando do conhecimento dos resultados, explicou que foi submetido o documento que prova à DGArtes a relação que existe há mais de uma década com o município de Viseu. No entanto, a DGArtes não considerou que a carta anexada na candidatura pelo município fosse “suficientemente clara para que lhe fosse atribuída uma classificação adequada” no parâmetro “processos de gestão”.

“Se são tratados de forma diferente nas garantias prestadas à DGartes, esta é uma decisão claramente política”, queixam-se vários agentes culturais do país que nos últimos dias têm vindo a público manifestarem o seu descontentamento com a atribuição dos apoios.
A companhia Seiva Trupe, por exemplo, com 50 anos de atividade, avançou com um “requerimento hierárquico” ao ministro da Cultura, para reverter a exclusão do apoio estatal, demonstrando que caso contrário é a morte da instituição
O diretor da companhia, Jorge Castro Guedes, disse que a seleção das estruturas para receber financiamento se transformou numa “situação de uma lotaria”.

Outras das críticas prende-se com a equidade dos apoios, já que houve uma maior capacidade de resposta à modalidade quadrienal, que abrangeu perto de 90% das candidaturas elegíveis para apoio, por comparação com as candidaturas à modalidade bienal, em que pouco mais de metade, nas mesmas condições, obtiveram apoio.

“Isto merece-nos a maior reserva quanto à equidade da medida tomada após o início do concurso dos apoios sustentados pelo governo”, salientou, igualmente, Sandra Oliveira na carta enviada a Pedro Adão e Silva.

Contestação no setor

Os agentes culturais falam em injustiça e criticam o Governo por avaliar o setor em números em vez de olhar aos projetos.
A associação Plateia — Profissionais de Artes Cénicas lançou um abaixo-assinado com mais de 800 assinaturas apelando ao reforço de verbas para os apoios sustentados e reforça que as candidaturas propostas para apoio no concurso na modalidade bienal não beneficiaram de reforço financeiro, como aconteceu com a modalidade quadrienal, criando uma situação de injustiça e de assimetria entre modalidades.
Publicamente ou através das redes sociais, artistas e produtores queixam-se dos critérios na atribuição dos apoios da Direção-Geral das Artes (DGArtes) e nos subterfúgios que estão a ser anunciados para excluir candidaturas.

“É conhecida a injustiça geral e transversal no sector cultural relativa aos concursos de apoio da DGartes, com discrepâncias entre apoios quadrienais e bienais, atraso na saída dos resultados dos concursos; estruturas com 80% de avaliação do júri que são excluídas, mas também outras a quem o júri decidiu tirar um ponto por não considerarem a carta da câmara envolvida como uma confirmação clara de apoio (como aconteceu aos Jardins Efémeros) enquanto cartas da mesma câmara elegem para apoio estruturas cujo júri considera que têm células mal calculadas no seu orçamento”, denunciou, nas redes sociais, Patrícia Portela, a escritora e antiga diretora do Teatro Viriato.

Já Raquel Castro, viseense, realizadora e investigadora na área do som, lamentou ser “triste perceber a situação precária e imprevisível a que estão sujeitos alguns agentes culturais cujo trabalho, apesar de amplamente reconhecido, está sempre em risco”.
“Vive-se um dia de cada vez, um ano a seguir ao outro, sem vislumbrar um horizonte de segurança que permita projetar realmente o futuro”, escreveu como desabafo.


O que fica?

“O não apoio a esta candidatura [Pausa Possível] traduzir-se-á num retrocesso cívico, social, cultural, de urbanidade e até económico que a Região de Viseu viverá, com consequentes impactos na noção de liberdade, de cidadania, de originalidade e de vanguardas, das suas populações, logo na democracia portuguesa, em particular no interior de Portugal”, resumiu Sandra Oliveira se, por falta de apoio, os Jardins Efémeros não se realizarem.
Um retrocesso que promotores e público querem travar. “A relevância, qualidade e diversidade de oferta cultural julgo serem inquestionáveis. O que sempre gostei mais de viver em Viseu são as pessoas que fazem da cidade e as vivências revestirem-se de uma beleza atípica. Viseu já merecia respeito por quem, ano após ano torna esta cidade e as suas vivências em algo bonito. Viseu já merecia quem reconhecesse que sem sonhadores não há sonhos e sem sonhos somos todos muito mais pobres”, sustentou, por seu lado, o músico Ricardo Ramos.


Das candidaturas apresentadas aos apoios bienais (linha Programação), a da associação que promove os Jardins Efémeros ficou em 23.º lugar, não tendo conseguido garantir os 240 mil euros da DGArtes (120 mil euros por ano) que solicitava.
Inicialmente, a Pausa Possível apenas recebia financiamento do município de Viseu, mas, desde 2017, passou também a ser apoiada pela DGArtes.
No âmbito do programa Eixo Cultura, o município de Viseu já tinha garantido um apoio quadrienal à Pausa Possível, no valor de 95 mil euros por ano (a renovar, até 2025, mediante apresentação de relatório que confirme a concretização do plano de atividades).

A próxima edição dos Jardins Efémeros deveria realizar-se entre 07 e 15 de julho de 2023.
Segundo Sandra Oliveira, “está quase tudo fechado em termos de programa artístico”, havendo protocolos entre instituições e organizações culturais para elaboração de atividades artísticas.
A sua não realização “irá trazer um impacto muito negativo para os artistas envolvidos e para muitas estruturas locais, nacionais e internacionais com quem estava previsto trabalhar”, lamentou.
A DGArtes divulgou este mês os resultados provisórios dos concursos de apoio sustentado às artes, nas modalidades bienal (2023-2024) e quadrienal (2023-2026), nas áreas de Dança; Música e Ópera; Cruzamento Disciplinar, Circo e Artes de Rua; Artes Visuais; Programação e Teatro.