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Quanto vale um livro quando o corpo está preso, mas a mente quer ser livre?

No Estabelecimento Prisional de Viseu, quando os reclusos regressam às suas celas, dezenas de mentes viajam para fora dos muros de cimento com recurso à leitura. Tal é possível graças à iniciativa Biblioteca Fora de Portas, da biblioteca municipal. Cerca de 200 livros foram levados para a prisão, e 78 acabaram por lá ficar, requisitados por 48 reclusos. Uma vez por mês, as obras podem ser entregues e novos livros podem ser requisitados, num ciclo que permite aos detidos viajara para fora das celas a que estão confinados

Diogo Paredes | diogo.paredes@jornaldocentro.pt
 Quanto vale um livro quando o corpo está preso, mas a mente quer ser livre? - Jornal do Centro
05.11.23
fotografia: Jornal do Centro
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05.11.23
Fotografia: Jornal do Centro
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 Quanto vale um livro quando o corpo está preso, mas a mente quer ser livre? - Jornal do Centro

Quem vir o Estabelecimento Prisional de São José, em Viseu, do lado de fora, vê apenas mais uma prisão como tantas outras. Muros altos transponíveis apenas por um portão com videovigilância, gradeamentos com arame farpado no cimo e barras nas janelas. Ao todo, são cerca de 90 os reclusos que se encontram neste estabelecimento. Cerca de 30 encontram-se em regime aberto, pelo que podem realizar diversas tarefas no exterior da prisão, que vão da construção civil à agricultura ou à culinária. Os outros 60 encontram-se em prisão preventiva, e aguardam ainda pelo julgamento. Os prisioneiros em regime aberto encontram-se detidos por “delitos menores”, como a condução sob o efeito de álcool. Já na ala da prisão preventiva estão aqueles que cometeram qualquer tipo de crime.

A diretora do Estabelecimento Prisional de Viseu, Paula Sobral, explicou-me que, de entre os reclusos detidos nesta ala, o mais comum são os crimes relacionados com fogo posto, pequenos furtos e ainda de cariz sexual. Alguns são ciganos, outros são antigos emigrantes e outros são jovens de bairros sociais. Uns têm maior literacia, outros são praticamente analfabetos, não tendo pegado em mais nenhum livro a não ser aqueles a que eram obrigados nos tempos de escola. Mas, neste estabelecimento prisional, há uma coisa que é cada vez mais comum entre os reclusos: a paixão pela leitura.

Os grandes responsáveis por isso são os técnicos da Biblioteca Municipal D. Manuel da Silva, em Viseu. Duas vezes por mês, os técnicos viajam até às instalações da prisão para incutirem hábitos de leitura aos reclusos, embora não seja apenas este o papel que acabam por ter para aqueles cuja liberdade lhes foi retirada em função dos seus crimes. Numa das visitas mensais ao estabelecimento, são realizadas sessões temáticas de leitura ou de escrita criativa. Os reclusos são convidados a debater os livros que andam a ler ou a apresentar as suas mais recentes leituras. Noutras vezes, é-lhes proposto escreverem quadras ou contos para participarem em concursos de escrita. Além das visitas que resultam nestas sessões, os reclusos são visitados uma segunda vez pelos técnicos da biblioteca, naquele que é para muitos o melhor dia do mês.  Munidos com caixas de plástico cheias de livros e revistas, os técnicos montam, numa das salas de convívio da ala preventiva, uma feira do livro.

Estas duas iniciativas fazem parte do projeto Biblioteca Fora de Portas. No início, em 2016, era apenas realizada uma visita por mês, onde eram realizadas leituras de publicações periódicas. O objetivo inicial prendia-se com a necessidade de garantir que os reclusos não ficassem completamente desinformados durante o seu tempo no estabelecimento prisional. Durante a pandemia, com os confinamentos e a proibição de circulação, as visitas dos técnicos da biblioteca foram suspensas. “Depois da pandemia, verificámos que havia uma ‘fome’ de livros de leitura, de necessidade de acesso à informação, porque muitos dos reclusos têm visitas de familiares, mas tirando um ou outro, os restantes não têm como pedir às famílias que comprem livros, e nós começámos a verificar que havia uma vontade de aceder ao livro”, explicou-me Teresa Almeida, responsável pela iniciativa.

Durante a feira do livro, as mesas da sala de convívio são alinhadas umas junto das outras, em forma de “L”. Depois, os livros são dispostos em cima das mesas, dando assim aos reclusos acesso a duas centenas de obras. “A volta ao mundo em 80 dias”, de Júlio Verne, “Ensaio sobre a cegueira”, “As impertinências da morte” ou “O homem duplicado”, de José Saramago, encontravam-se por entre bandas desenhadas do Asterix e Obelix, por entre policiais do Sherlock Holmes ou livros como “O Codex 632”.  Divididos em dois grupos de 30 reclusos, os visitantes desta feira do livro iam-se aproximando da mostra. Uns mais eufóricos, outros mais tímidos, a maioria de livros debaixo do braço, os reclusos acabavam aos poucos por entrar na sala.

Silvestre Silva levava consigo o livro “Marcada”, da coleção “A Casa da Noite”. Antes de entregar o livro ao técnico da biblioteca, abriu-o na última página e apontou para a imagem do segundo volume da coleção: “Conseguem trazer-me este livro na próxima feira?”. Quando lhe disseram que iam tentar, o agradecimento de Silvestre Silva foi seguido de um novo pedido: “Por favor, senão estive a ler essa bíblia para nada”. Detido há cinco meses, Silvestre Silva interessou-se desde o início da sua estadia pela iniciativa. Calmamente, ia passando o olhar por todos os livros expostos. De quando em quando, pegava numa obra, folheava-a e lia a sinopse da contracapa.

Os pedidos eram feitos a Teresa Almeida por Silvestre Silva assim como por outros reclusos indecisos: “Não sei bem que livro levar… gosto de romances e de policiais, mas não sei bem”, ouvia-se. O conteúdo de cada livro era esmifrado até ao fim, especialmente quando a conversa surgia das recomendações de um recluso a um colega. “Gostei deste, o fim é um pouco imprevisível, e tem boas cenas de ação”, ou então “Não gosto muito dos policiais que seguem sempre a mesma lógica, estou a ler a meio e já sei o que vai acontecer”.

Cada recluso pode ter na sua posse até três livros, mas não é incomum falarem com os colegas de cela e levarem depois vários livros em que ambos estejam interessados. As trocas de obras para ler são algo normal neste estabelecimento prisional. Um recluso novo no estabelecimento aproximou-se da bibliotecária. “Olhe, eu nunca li um livro, só os Lusíadas na escola, mas gostava de começar a ler. Que livros me aconselha?”, perguntou o recluso. A quem gostasse de leituras mais “ligeiras” eram sugeridos livros de banda desenhada, contos ou poesia. Outros optavam por autores como José Rodrigues dos Santos ou José Saramago. 

Do espólio de obras levado nesse dia, faziam parte livros em inglês, em francês e até mesmo em russo, com o alfabeto cirílico. “Temos alguns reclusos que foram emigrantes, ou que têm outras nacionalidades, por isso tentamos trazer também obras que eles possam ler porque também têm esse direito”, explicou-me Teresa Almeida. Um dos reclusos, de nacionalidade ucraniana, aproximou-se da mesa e pegou nos três livros em russo. Embora a língua seja diferente, é semelhante o suficiente para que este, com algum esforço, consiga ler as obras. Com um sorriso de orelha a orelha, dirigiu-se ao técnico da biblioteca para requisitar os livros. Para a grande maioria dos reclusos que frequentam a feira do livro, estes objetos são por vezes a única coisa a que se conseguem agarrar para que, como muitos vezes me disseram, “a cabeça não fique num mau sítio”.  

Filipe Manteigas está no Estabelecimento Prisional de Viseu há 21 meses. Para ele, a feira do livro é importante uma vez que os livros “ajudam a refletir sobre os erros que cometemos até aqui chegar”. “Ajuda a desanuviar a cabeça, porque estamos muita horas fechados e a cabeça nem sempre está nas devidas condições. Desde que comecei a ler sinto-me mais calmo, mais coerente com todas as pessoas”, contou. Filipe costuma falar sobre os livros com Elton Prudêncio, e é frequente os dois partilharem leituras e falarem sobre as obras que leram.

Elton Prudêncio entrou no Estabelecimento Prisional de Viseu em 2021 e é atualmente o barbeiro da prisão. Sempre que pode, por entre cortes de cabelo, aproveita os 15 minutos livres que tem para avançar na sua leitura. “Eu lá fora não lia muito para ser sincero. Lia muito a bíblia que era um livro que tinha muita importância e que nos enche por dentro”, explicou-me. “Eu sou da comunidade evangélica, mas quando entrei cá dentro comecei a ler outros tipos de livros. Comecei a ler romances e comecei a ler livros que nos projetam para a liberdade, que isso é o mais importante.” Para Elton, a leitura tem sido um escape ao longo dos últimos dois anos. “Não só para mim, como para os meus colegas também. Não estamos sempre a pensar no mesmo. Quando entramos no mundo da leitura quebramos um pouco a rotina e entramos na festa, porque ler um livro para mim é uma festa, é esquecer tudo o que temos ao nosso redor cá dentro. Esquecer os problemas e as coisas lá fora”, contou o agora barbeiro da prisão de Viseu. Quando a hora do fecho chega, no final do dia, Elton e os colegas pegam num livro e aproveitam para ler à vontade, evidente no silêncio que se faz sentir na camarata.

“Tento sempre estar presente nas atividades do EP, porque às vezes há coisas que nós não sabemos ou que nem fazemos ideia lá fora e chegamos aqui e até é mais uma coisa para nos instruir lá para fora, porque esse é o objetivo”, continuou a explicar-me Elton Prudêncio, antes de se dirigir à mostra de livros para escolher calmamente uma obra para si. “O objetivo da reinserção social cá dentro é sairmos instruídos, de dentro para fora, e é esse objetivo. Vejo que o mais importante são os estudos, ler e adquirir conhecimento.” Para o barbeiro, a leitura é um auxílio à introspeção, nos momentos em que os reclusos equacionam as suas escolhas de vida, aquilo que “podia ter sido feito de uma maneira, mas que se fez de outra”.

“Eu nunca pensei que a leitura fosse tão poderosa e que fosse tão importante, mas neste momento tenho colegas meus que já me disseram ‘lá fora nunca pensava em ler nem apanhar um livro, e cá dentro meto-me a ler e passo o tempo e quando dou por mim estou na hora de abertura’”, confidenciou o barbeiro.

Também Hugo Gomes costuma aproveitar as pequenas pausas na sua função dentro da prisão para colocar a leitura em dia. Até recentemente, Hugo Gomes era o ajudante do cozinheiro principal da messe dos guardas prisionais. Agora, é ele que está responsável pela confeção de todos os pratos. Interessado principalmente por livros de psicologia e introspeção, Hugo Gomes interessou-se pela leitura desde que a Biblioteca Fora de Portas começou.

À tarde, é a vez de se montar a feira do livro na ala dos reclusos em regime aberto. Aqueles que se encontram detidos nesta ala trabalham durante a manhã e durante a tarde, usufruindo de um curto período depois de almoço em que podem aproveitar para descansar ou para conviver uns com os outros. É durante este período que os técnicos da biblioteca se encontram no refeitório da ala. Uma fileira de mesas que há minutos tinha servido para os reclusos comerem em tabuleiros albergava agora dezenas de livros e revistas. Neste caso, dado terem menos tempo livre e estarem geralmente mais cansados ao final do dia, são menos os reclusos que optam por requisitar um livro. Outros, contudo, mantém o hábito de ler.

“Esta biblioteca significa que não nos sentimos sós, que temos tempo para nos distrairmos com a leitura e ficarmos a par da cultura em geral. Temos a oportunidade de ler, uma vez que ‘estamos parados no tempo’ aqui dentro”, explicou José Rocha. O recluso costuma aproveitar o fim do dia, entre as 20h e as 22h para ler. “Eu gosto muito de psicologia sobretudo. Quando estive preso uma outra vez em Coimbra eu entrei na universidade em Psicologia. Não acabei, fiquei a meio da licenciatura, mas agora tenho uma certa curiosidade em manter aquilo que já aprendi e estudar mais um pouco”, assumiu.

Além da feira do livro, o recluso, que se encontra no Estabelecimento Prisional de Viseu há cerca de dois anos, assumiu que também tenta sempre frequentar as sessões temáticas. De momento, José Rocha prepara um sarau de Natal que irá realizar na prisão.

No caso de Sandro, a Biblioteca Fora de Portas deu a conhecer “imensas obras que eu desconhecia totalmente, e acentuou mais a minha vontade de ler”. Além de livros de filosofia e de psicologia, o recluso procura ainda ler thrillers psicológicos, policiais e romances. Detido há cerca de dois anos e meio, o recluso frequenta a iniciativa desde que entrou na prisão. Embora na ala de regime aberto não existe um hábito tão difundido de ler, Sandro partilha este gosto pela leitura com o colega de cela. “Com as pessoas que leem, faz-se um assunto mais recorrente e conversamos um pouco mais sobre isso como no caso desse tal colega que eu tenho, em que sempre que acabamos de ler um livro passamos horas a falar sobre ele”, explicou.

“Eu já tenho mais de 30 anos de serviço nas prisões e esta para mim é das iniciativas que tem o melhor funcionamento de biblioteca pública que eu já vi alguma vez na vida”, contou-me a diretora do Estabelecimento Prisional de Viseu. “Eles têm o trabalho de se deslocar até aqui de trazer livros representativos de todos os géneros e criam aqui uma dinâmica que é extremamente importante para os reclusos e que tem um impacto brutal. Se for a cada uma das celas, tem sempre meia dúzia de reclusos que estão a ler um, dois três livros.”

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