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O que é que uma bailarina americana da Belle Époque precursora da dança contemporânea e uma filósofa e cientista do império romano residente em Alexandria têm em comum? À primeira vista, pode parecer que não há nada que una estas duas figuras feministas, cada uma à frente da sua época. Para Ana Seia de Matos, cenógrafa que se estreia agora enquanto dramaturga, Isadora Duncan e Hipátia têm mais em comum do que aparentam. De tal modo que têm, agora, a oportunidade de subir a palco para dialogar – tanto por palavras como por gestos e movimentos de dança.
Esta sexta-feira e sábado, Mariana Silva e Sofia Moura vão reencarnar Isadora e Hipátia no espetáculo “Tudo o que Existe”, que junta teatro e dança, num diálogo constante entre ambas. “Tentei trazer um pouco de cada uma delas”, começou por explicar ao Jornal do Centro a dramaturga e encenadora Ana Seia de Matos. “A Isadora deixou autobiografia e várias crónicas e artigos sobre a sua visão da dança, a história da Hipátia, contudo, foi toda por outras pessoas, sobretudo alunos e também pessoas que a viam quase como uma influência perniciosa nos governantes da altura em Alexandria”, disse ainda.
Durante as últimas duas semanas antes dos espetáculos, os ensaios têm sido realizados no Polo II do Círculo de Criação Contemporânea de Viseu. O Jornal do Centro teve a oportunidade de assistir a um dos ensaios. Aquando da minha chegada ao Polo II, as três mulheres, Mariana Silva, Sofia Moura e Ana Seia de Matos encontravam-se reunidas a ouvir vários áudios de monólogos, na tentativa de escolher aquele que seria apresentado na peça final. Escolhido o melhor áudio, as duas atrizes foram vestir a roupa com que atuariam esta sexta-feira e sábado. Os figurinos encontravam-se ainda incompletos, com Ana Seia de Matos a avaliar possíveis alterações para o espetáculo.
Enquanto as atrizes trocavam de roupa, Ana Seia de Matos detalhou um pouco o seu processo de ponderação na escolha das duas figuras históricas, particularmente Hipátia. “Tens pessoas que gostavam muito dela e pessoas que a detestavam, depois acho que houve ali uma altura perto do Iluminismo e depois do Romantismo em que a foram resgatar como um símbolo da ciência contra a religião, além de ter sido utilizada também como símbolo pelas feministas”, assumiu a dramaturga.
“Descreveram poemas como se ela tivesse um amante, ou seja, a romantização não era só da ciência versus religião, mas houve também uma alteração do que terá sido de facto a vida de Hipátia”, acrescentou. Embora a data do seu nascimento seja incerta, sabe-se que a filósofa da Antiguidade terá morrido com cerca de 50 a 60 anos. As representações de Hipátia na pintura, na escultura e em poemas é, contudo, a de uma jovem que ter-se-á envolvido com vários amantes, contou a encenadora.
Passado alguns minutos após a saída, Mariana Silva e Sofia Moura apareceram novamente no palco, ambas com vestidos brancos. Algumas palavras trocadas e a tilintar ligeiramente devido ao frio, começaram a preparar-se para o ensaio geral. Movimentos fluídos iam sendo improvisados por ambas enquanto treinavam partes das suas falas, repetindo-as vezes e vezes sem conta, até serem tão normais quanto o próprio respirar.
Durante o ensaio, foram abordados vários temas, desde a Natureza, a existência de Deus, a maternidade ou o racismo e a escravatura. “Nós, quando lemos a autobiografia da Isadora, ficámos um pouco chocadas, porque ela é muito feminista, era filha do seu tempo e era americana”, afirmou Ana Seia de Matos. “Então, apesar de ela ser muito viajada e muito cosmopolita, viveu a maior parte da sua vida fora dos Estados Unidos e preservou ali um lado racista, e eu achei que seria interessante colocar isso no texto e de ser até um momento de conversa entre as duas”, disse ainda.
Sofia Moura, que interpreta Hipátia, considerou ainda que a ideia, ao colocar este tipo de temas, tem que ver com uma tentativa de “mostrar que todas as pessoas têm as suas contradições e as suas incoerências”. “Se calhar nós concordamos em imensa coisa com ela e depois discordamos disto. Tendemos a coloca pessoas como os pensadores em pedestais, mas as pessoas são pessoas, são de carne e osso e têm estes lados, não são bidimensionais”, contou a atriz.
Se, no caso de Isadora, existem vários registos da mesma, incluindo uma autobiografia, no caso de Hipátia, o que se sabe é muito pouco e com origem em textos de outras pessoas, pelo que houve um maior trabalho de imaginação por parte de Ana Seia de Matos na construção da personagem.
“Eu acho que a ideia também é falar da amizade, porque no fundo isto é uma conversa entre duas mulheres muito diferentes, que se tornaram amigas em circunstâncias que nós não sabemos”, explicou a encenadora. “Apesar de elas chocarem em alguns pontos, no fundo são amigas, até porque a ideia era mostrar que não é preciso adotar, por vezes, posições tao extremadas em que depois não consiga existir diálogo”, disse igualmente Ana Seia de Matos.
Embora as duas atrizes tenham estudado a fundo as figuras históricas que representam, nem todos os aspetos foram fáceis de concretizar. Sofia Moura, que representa Hipátia, assumiu que a dificuldade em “entender como é que o movimento do corpo pode ser esse tal caminho para o divino”, isto porque, no seu entender, “é mais a razão do pensamento”.
“Acho que a dificuldade da Isadora é porque esta questão de Deus na sua altura já estava tão marcada com estas divisões que ela não consegue descobrir o que é que uma coisa tem que ver com a outra, o divino com a música e a dança, e esta imagem de Deus não é o que ela procurava descobrir”, assumiu, por seu lado, Mariana Silva.
Durante a construção do espetáculo, encenadora e atrizes/bailarinas participaram em duas residências artísticas, uma na Casa dos Gomes, em São João de Lourosa, e outra no Teatro Viriato. No caso de Mariana, o estudo de Isadora partiu muito de um documentário realizado pelas filhas da bailarina americana assim como de um livro autobiográfico que “foi como uma bíblia” para Mariana. “Ela descreve muitos exercícios que fazia assim como a forma como imaginava a sua dança”, detalhou a atriz. Além disso, o grupo contou com a ajuda de duas bailarinas de destaque na região: Leonor Keil e Leonor Barata. No final, Mariana tentou que “não ficasse apenas a Isadora em palco”, mas também um pouco de si mesma.
No caso de Sofia, com uma personagem que exigiu mais de representação em vez de dança, foi fundamental a ajuda de atores como Joana Gomes Martins ou Dennis Xavier. Além disso, quando a peça começou a ser construída, estava mais uma pessoa em palco, a acompanhar Sofia. “Quando começámos este processo, eu estava gravidíssima”, assumiu.
A primeira residência foi mais dedicada ao texto, ao modo como as ideias tinham todas de se encontrar em palco e como tinham de fazer sentido na apresentação final. No final das primeiras duas semanas, contudo, as atrizes já quase representavam as suas partes sem recurso ao papel, algo difícil de fazer quando existe um constante diálogo com cerca de uma hora.
O segredo para conseguir representar um espetáculo deste género, confidenciou Sofia, passa por “estar no presente e constantemente com uma escuta ativa”. “Se nós estivermos num ponto em que, se a outra deixar cair a bola, a outra vai lá e consegue apanhá-la. Mesmo nós próprias, às vezes, podemos trocar coisas dentro do nosso discurso e conseguimos ir buscar e repor”, explicou Sofia Moura.
Para Mariana, o “Tudo o que Existe” acaba por ser “uma dança ou um dueto”, pelo que “sempre que algo mudava na Hipátia mudava também na Isadora”. Esta agilidade mental na memorização dos diálogos implica também desafios, como a tendência para que certas partes “comecem a ficar cristalizadas”.
“Além disso, não podes ficar agarrado nem a um erro que fizeste nem a uma coisa que achas que te saiu muito bem”, disse ainda a atriz que representa Isadora em palco.
O apoio na produção da peça, contudo, foi mais do que o aspeto representativo ou de dança. Num espetáculo em que apenas estão duas figuras em palco, é importante uma boa dinâmica de luz e de som. Na luz, Ana Seia de Matos contou com a ajuda de Luís Belo e Tomás Gamboa.
O cenário foi escolhido para representar algo que, na visão da encenadora, transportasse a audiência para um universo da Antiguidade Clássica. “Queria que fosse algo que elas pudessem trepar e depois a Hipátia, como está mais próxima do divino, teria um cenário mais alto”, explicou a dramaturga. “Depois lembrei-me das escadas, como forma também não só de elas interagirem mais uma com a outra, mas também como espaço de conversa, onde pudessem estar cada uma sentada na sua escada a conversar”, disse ainda Ana Seia de Matos.
A peça conta com três datas, sendo que esta sexta-feira é apresentada às 21h30 no Polo II do Círculo de Criação Contemporânea de Viseu. No sábado, dia 10, “Tudo o que Existe” é apresentado às 16h00 e às 21h30. Ana Seia de Matos ficou encarregue da criação, dramaturgia, cenografia e produção da peça e a criação e interpretação vai ser desenvolvida por Mariana Silva e Sofia Moura.
Carla Galvão, por seu lado, empresta a sua voz à peça. O design, a fotografia, o vídeo e a assistência à produção ficam a cargo de Luís Belo. Rui Macário contribuiu com um apoio à produção, Leonor Keil esteve presente no apoio à dança, assim como Leonor Barata, e Isabel Fonseca prestou auxílio na construção dos conceitos filosóficos do espetáculo.
Àqueles que procurem ver uma peça onde o diálogo de palavras e movimentos seja realizado em constante respeito pelo próximo, no Polo II podem assistir a uma discussão sobre “Tudo o que Existe”.