Autor

David Duarte

03 de 06 de 2023, 07:33

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 16 de Agosto de 1984

A ausência provoca-me a desertificação da alma. Fragiliza-se-me o sentido de orientação, como um barco sem bússola

Percebi o quanto ela amadurecera interiormente. Não deixou de ser a miúda dos perfumes, quer na simplicidades das roupas, na franqueza dos gestos, quer no modo quase maternal como me ama, a mim, que naquele tempo, ainda era mais miúdo que ela em todos os aspetos. Tudo nela ganhou profundidade, sem se adulterar. Penso no seu gosto por Mozart. Ouve-o sem vaidades, sem anúncios, eu nem sabia, mas ouve-o como dantes escutava música pop, com o mesmo despojamento, ainda que com um outro tipo de exigência. Admiro também a sua disponibilidade intelectual para a aprendizagem. Estuda por gosto de aprender. Aprender a compreender melhor o mundo e a si própria. Ainda que tudo se iniciasse no singelo desejo de me acompanhar intelectualmente.
Depois de ela partir, percebi que tudo se precipita dentro de mim. Não há volta a dar-lhe, a ausência provoca-me a desertificação da alma. Fragiliza-se-me o sentido de orientação, como um barco sem bússola. A memória, que poderia servir de alavanca para a esperança, apenas reforça a consciência do vazio que me restou. Sou dramático, sou patético, mas preciso destas feridas para o meu teatro interior. Não sei, nem quero viver a normalidade da vida de todos os dias. Preciso da melancolia para atapetar o chão do quotidiano. Há os que se esforçam por expulsá-la das suas vidas. Eu dou-lhe as boas vindas. Gosto de viver melancolicamente. Apesar dos protestos por vezes neste diário inscritos. É a minha razão de vida na ausência do meu amor. Sou assim, e pronto.
Junto da Fátima, a melancolia que em mim persiste é, no entanto, diferente. Às vezes, nem a sinto. Se calhar, nem é bem melancolia, mas um reconhecimento da brevidade da vida. Eu e ela um dia deixaremos de existir, penso nisto algumas vezes. Aquele rosto transformado em máscara, aquele corpo em pó desfeito, o sentimento que nos une sem uma alma que o sustente, são imagens terríveis que me sufocam. Mas estar ao lado dela suaviza a carne viva desta angústia projetiva. Longe dela pesa-me esta realidade como se de repente fosse arrebatado para o subúrbio insalubre de uma grande cidade estrangeira. Faço as perguntas próprias dessa circunstância: onde estou? Que faço aqui? Quem é esta gente? Porquê?