Carlos Eduardo

31 de 07 de 2021, 08:30

Cultura

Jorge Fraga em entrevista. "Rezo a fazer teatro. As minhas orações servem para as pessoas acordarem"

Jorge Fraga. O mestre Fraga, como é tratado por alguns dos atores e atrizes com quem já trabalhou e agora encena. Não nasceu em Viseu, mas escolheu a cidade de Viriato desde 1977 para o seu palco. Nesta entrevista lembra a mãe, as férias na infância e o episódio que viveu em 2013 e que o fez valorizar mais o momento vivido hoje e não o que pode não acontecer amanhã

Jorge Fraga

Já sei que não gosta de ver-se ao espelho...
Não necessariamente. Não é uma questão que coloque todos os dias. Aliás, a minha casa de banho é pequenina e eu espelhei-a toda. É muito difícil passar despercebido.

Mas a malta ligada ao teatro olha-se muito ao espelho?
Depende dos atores... Apesar de tudo eu sou mais encenador do que ator e nunca achei muita necessidade de me ver ao espelho porque, para mim, o espelho são os outros e é o público.

Onde é que nasce?
Costumo brincar. Digo que nasci no hífen. No meu cartão de cidadão diz que nasci em Riachos - Torres Novas. E eu brincava com a minha mãe a perguntar se tinha nascido no caminho entre Riachos e Torres Novas. Mas não. Nasci no Hospital de Torres Novas.

E ficou em Torres Novas muito tempo?
Um ano até o meu pai falecer. Faleceu no dia do meu aniversário, a 24 de abril. Nessa altura, tive um tio que ajudou a minha mãe. Era muito normal os irmãos ajudarem-se. E acabei por ir viver para Rio Maior para casa do meu tio. A minha mãe sempre foi uma mulher independente e valente e aos três anos fui para Lisboa.

E crescer sem a figura do pai afetou-o muito ou teve uma mãe que conseguiu complementar?
Tive uma mãe que arranjou um companheiro maravilhoso, quando eu tinha quatro ou cinco anos. O Eugénio foi o meu pai, foi a figura paterna.

Que memória tem deles?
Muito divertidos, muito bem dispostos. Passeávamos muito. Todos os fins de semana íamos acampar. Tínhamos uma casa na Arrábida. Na altura atravessávamos o Rio Tejo de barco, com bom tempo ou não. Íamos de 15 em 15 dias para a Arrábida e nas outras semanas íamos conhecer o país.

Brotava amor entre vós...
Sim, sim. Sempre fomos uma família muito unida. Foi uma belíssima infância.

E a adolescência?
Foi rebelde qb.

Ainda por cima vivia-se antes de Abril...
Pois era muito difícil. Já éramos rebeldes porque éramos do contra. E mesmo sendo os meus pais muito positivos e permissivos, fazia parte fazermos algum tipo de rebelião contra os pais. Mas só tenho a dizer bem.

E na escola? Qual era a disciplina preferida?
Filosofia, geografia, inglês, francês... Ah e trabalhos manuais! Na altura obrigavam-nos a ler 'Os Lusíadas'. Era horrível.

E já na altura pensava que ia ser ator?
Não, nunca pensei nisso. Sempre tive uma educação com muitas exposições, concertos, festivais. Sempre tive amigos ligados às artes, mas nunca pensei em ir eu para o teatro.

O que é que sonhava na altura?
Ser astronauta (risos). Aliás, foi a única vez que apanhei. No dia em que o homem pôs o pé na Lua, a minha mãe deu-me uma chapadinha na cara para eu acordar. Disse-me que ia ficar na história. Respondi-lhe que o que ia ficar na história foi aquela lambada. Foi a única vez que ela me bateu, para acordar.

E já na altura era tímido ou ganhou essa timidez com a idade?
Eu até acho que sou sociável, mas sou recatado. É a forma como cresces. Fui sempre educado como filho único, mas sempre fomos recatados na nossa intimidade e na nossa forma de ser. Mantenho isso. Gosto da pouca exposição mediática e gosto que seja o meu trabalho a dar a cara por mim.

E o Teatro bate à porta quando?
Foi de uma maneira muito estranha. Estávamos em 1973 e o meu amigo Joaquim Castro Caldas ia fazer as provas para o Conservatório Nacional. Nessa fase eu andava muito baralhado se havia de ir para o estrangeiro e ser exilado ou se devia ter ficado. Já tinha vivido em Nova Iorque e Londres.. Há sempre a ligação à nossa terra e à família, mas, do outro lado, havia sempre um outro mundo para descobrir. Esse meu amigo foi fazer exame ao Conservatório e perguntou-me se não o queria ajudar nas provas. Ele precisava que ele dissesse as deixas dele. Inscrevi-me também e foi fantástico: fiquei.

Sem querer...
Ah depois já queria. Quando tu te metes...

E o primeiro mestre quem foi?
O Osório Mateus foi uma referência para mim. Alguém que encara o teatro de uma perspetiva de pensamento, de reflexão, de dramaturgia, o texto. Foi muito interessante trabalhar com ele. Abriu-me e rasgou-me horizontes que eu desconhecia. É um mestre.

Em 1977 vem para Viseu...
Nós já tínhamos construído a Centelha a partir da Escola do Conservatório na altura. Viemos para Viseu em 77. Tivemos três anos a trabalhar cá como Centelha que depois se desfez e deu origem à Companhia de Teatro de Viseu. Cada um seguiu o seu caminho e eu fiquei por cá.

E deu aulas...
Sim, tinha filhos para criar, tinha uma família. Então fiquei em part-time no Teatro e na educação.

Costumamos dizer que na escola há uma troca de valores. O que é que lhe ficou e ainda fica de ser professor?
Há uma permanente inquietação de dar resposta às inquietações deles o que me obriga a ser inquieto e curioso. Acho que um professor nunca sabe nada. Um professor tem de atualizar-se sempre. Quando me perguntam se eu prefiro dar aulas ou estar no teatro, digo que não consigo escolher porque uma ajuda a outra. Considero que um professor não é um ator. Um professor tem de ser uma pessoa. Agora há coisas de um ator que dão jeito para as aulas: o falar bem, por exemplo.

Na vida assumimos vários papéis. No seu caso, como é que assumiu o de pai?
Ser pai é a coisa mais linda do mundo.

Mas teve sempre esse sonho?
Não, não. Aliás, as melhores coisas da vida são aquelas que nos surgem sem querermos. Quando se começa a planear muito nunca mais és pai, nunca mais casas... As coisas foram acontecendo. Seres pai é perceberes que há ali outro ser e depois vê-los crescer é extraordinário. Acho que eles são muito bem educados, aturam-me! (risos)

Que valores lhes passou?
A verdade, a justiça e a liberdade.

E revê-se neles?
Ah completamente. No bom e no mau. (risos) Também têm as suas telhas como eu... São os meus pulmões. Já que os meus não funcionam tão bem...

Mas fuma?
Não. Deixei em 2013.

Só aí? Porquê?
Porque caí para o lado.

Teve um problema sério de saúde então...
Sim. Renasci. Obrigou-me a dar muito mais importância ao minuto que estamos aqui a ter do que ao amanhã. E cada vez mais não sabemos o que vai acontecer. Vamos estar bem agora e deixar as coisas bem arrumadas.

E nos momentos mais aflitos foi buscar forças onde?
Aos valores que tenho, à noção que tenho de que ainda há muito para fazer, que ainda há gente que precisa de mim e eu delas. E não me quero ir embora tão cedo...

Mas tem medo disso?
Não tenho medo nenhum. Eu digo sempre que o medo é o oposto do amor. E eu amo a vida. Não tenho medo!

E Deus entra onde?
Eu digo sempre que Deus são dois eus. Deus existe porque o Homem quer que ele exista e o Homem existe porque Deus quer que exista. É o mesmo. Somos nós todos. Deus está em nós.

O Fraga reza?
Tenho o meu tipo de reza. Faço teatro. São as minhas orações. E é com elas que eu invoco os espíritos para as pessoas acordarem e estarmos todos em comunhão.

Como se o teatro fosse uma celebração?
É sempre. Seja uma catarse mais dramática ou mais cómica.

É mais difícil fazer rir ou chorar?
Fazer rir. É mais difícil escrever para fazer rir com inteligência do que fazer drama. As pessoas estão desejosas de chorar.

Que outros momentos marcantes recorda?
A 15 dias da estreia do "Magnífico reitor" faleceu a minha mãe. Tinha o elenco todo em cena e eu nesse dia escusei-me a ensaiar. Fiquei a assistir ao ensaio e aquela coisa que se diz meio a brincar, o "the show must go on" é mesmo verdade. O artista não tem esses lutos. O luto é interior. Foi o momento em que aquele valor da família do teatro foi forte. Ganhei forças com eles.

O luto faz-se depois ou não se consegue?
Vai-se fazendo. Mas ali tive o apoio e solidariedade daquela gente toda.

Nunca pensou cancelar?
Não! Nunca. Seria denegrir a memória dela. Eu fui educado na celebração, na luta pelo trabalho. Desistir, não. Nunca.

Cada ator tem uma personalidade própria. Dirigi-los é tarefa fácil?
É encontrar os atores certos para os papéis certos. Temos grandes atores em Portugal e atrizes! Toda a gente sabe que eu gosto mais de trabalhar com atrizes do que com atores. Não sei porquê. Não me tenho de explicar tanto. Elas entendem-me melhor.

É o sexto sentido?
Não, não tem a ver. Nós, atores estamos sempre na dúvida, se aquilo já está pronto, se, se... Com as atrizes as questões colocam-se, resolvem-se, seguimos em frente, já está.

Ouvir as palmas no fim é o reconhecimento de que tudo correu bem...
Pois é! É o código. Estabeleceu-se que, no teatro, aplaude-se quando as pessoas gostam. Por isso é que eu no teatro quando gosto da cena, bato palmas e até me levanto. No outro dia fui ao cinema e dancei a ver o filme.

Quando o pano da vida fechar, que imagem quer deixar?
A de uma vida inteira. Espero que esteja com um sorriso nos lábios. Eu sou um otimista. Acho que isto é tudo uma desgraça, vivemos momentos horríveis. A vida é tenebrosa, somos bombardeados pelas coisas mais horríveis. Mas, como dizia o Morin, este é o melhor dos mundos. Apesar de tudo estamos aqui. Estamos vivos. Podemos fazer alguma coisa pelos outros, por nós. Não devemos desistir.