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20 de 04 de 2024, 12:00

Diário

O que os registos da Assembleia contam sobre 50 anos da democracia, num “Guião para um país possível” no Teatro Viriato

No parlamento português, entre as bancadas dos deputados e a tribuna com membros do Governo, existe, exatamente a meio da sala, uma secretária sem nada à volta onde trabalham dois funcionários que têm a missão de transcrever tudo o que ali é dito. São centenas de milhares de páginas que registam debates, assembleias constituintes, votações, avanços e recuos nos direitos sociais, laborais e humanos num “Guião para um país possível”

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A peça “Guião para um País Possível” conta a história da democracia portuguesa a partir dos diários da Assembleia da República. O espetáculo sobe esta sexta-feira e sábado ao placo do Teatro Viriato, em Viseu e faz parte da programação desta temporada marcada pela premissa da liberdade. “Uma programação de liberdade, democrática e inclusiva”, como frisou o diretor artístico do Teatro Viriato.

O espetáculo, com dramaturgia e encenação de Sara Barros Leitão, que assim regressa a Viseu, começa com o público concentrado à porta da sala de teatro, à espera do início dos trabalhos parlamentares.

Os dois únicos atores em palco, João Melo e Margarida Carvalho, simbolizam os dois funcionários, que no hemiciclo, entre deputados e membros do Governo, são responsáveis pelas “transcrições fiéis e concretas de tudo o que acontece na Assembleia da República” e que contam “os 50 anos de democracia no país”.

“É desproporcional. São duas pessoas para 230 deputados. São duas pessoas para registar 50 anos de história. São sempre duas pessoas que transcrevem tudo o que é dito. São os guardiões da nossa democracia”, afirmou Sara Barros Leitão aquando da estreia da peça no Teatro Municipal Sá de Miranda, em Viana do Castelo.

A encenadora explicou que “o espetáculo começa, a partir dessas duas pessoas e acaba com essas duas pessoas” porque tudo o que se passa em cena “foi transcrito pelas mãos dessas duas pessoas”.

“Na verdade, não escrevo uma única palavra, neste espetáculo. Tudo o que é dito aqui [na peça], já foi dito na Assembleia da República, alguma vez, nestes 50 anos”, reforçou.

Sara Barros Leitão explicou que a ideia de construir o “Guião para um País Possível” começou há mais de um ano, quando leu, pela primeira vez, um diário das Assembleia da República.

“O diário tem falas, reações, tem apartes, tem personagens, tem conflito. Tem tudo aquilo que guião de teatro costuma ter. Só que este é mais real (…) Há momentos muito emocionantes, outros muito comoventes, outros muito cómicos, outros muito insólitos. O espetáculo faz um arco emocional que passa por muitos desses momentos aproximando as pessoas a um lado humanista que, às vezes, não se sente na Assembleia da República, ou parece que não se sente”, referiu.

Os 50 anos do 25 de Abril foi outra das razões que conduziram à construção do espetáculo.

“Interessa-nos pensar sobre a democracia, os avanços e recuos, sobre a nossa história coletiva”, enfatizou, realçando o trabalho de pesquisa que permitiu “selecionar os momentos marcantes” que contam a história da democracia, mas também “momentos desconhecidos da população”, resgatando “histórias mais pequenas e invisíveis”.

Na peça, a encenadora “junta vários momentos” que aconteceram na Assembleia da República para tratar, em cena, a questão do pudor, da sexualidade, entre outros temas.

“Foi o deputado José Sócrates, ainda muito jovem, acabado de chegar da Covilhã que fez a intervenção a pedir a legalização do naturismo. Depois o momento da deputada italiana Ilona Staller, conhecida por Cicciolina, que obrigou à interrupção do plenário, ter mostrado o peito, e as intervenções de Natália Correia ajudaram-nos a criar um momento, na Assembleia da República, em que o sexo, o corpo e o pudor podem entrar num lugar sempre muito institucional”, explicou. O tema do machismo, entra em cena com intervenções proferidas no dia 8 de março de 1990.

“Nessa altura não havia a politização do Dia da Mulher. Na sessão desse dia, há uma série de deputadas que tentam politizar o Dia da Mulher e uma outra série de outros deputados que dizem frases como: ‘As mulheres quando não protestam são mais belas’. Frases que envelhecem muito mal. Certamente, 33 anos depois, para muitos desses deputados ficaria muito mal visto e, infelizmente, outros continuam em 1990”, especificou.

Sara Barros Leitão estreou-se como atriz no Teatro Municipal Sá de Miranda, em Viana do Castelo, há 15 anos. Há dois anos, voltou já como encenadora para apresentar um espetáculo que concebeu e que também representou, “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa”, inspirado numa das “Novas Cartas Portuguesas”, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho das Costa, e nos registos relacionados com a criação do primeiro Sindicato do Serviço Doméstico em Portugal, no pós 25 de Abril.

“Guião para um País Possível” tem desenho de luz de Cárin Geada, composição musical de Pedro João, desenho de som de Mariana Guedelha, figurinos de Cristina Cunha, conceção de cenografia de António Quaresma e Susete Rebelo, coordenação da pesquisa de João Mineiro e apoio à dramaturgia e coordenação do Parlapatório de Carlos Malvarez.