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Sirenes que quebram o silêncio como um grito urgente, olhares que escondem mais do que mostram, vidas feitas de esperas interrompidas, de refeições à pressa e de ausências que não se explicam, apenas se aceitam. Há quem todos os dias, largue tudo para estar onde mais precisam deles. Sem aplausos, sem certezas, sem garantias de regresso. É num quartel em São Pedro do Sul, no distrito de Viseu, que cada dia é uma nova incerteza. Os soldados da paz não são apenas uma força de socorro, são a alma viva de uma comunidade que aprendeu, desde cedo, o significado de entreajuda e fazem-no com um misto de determinação, cansaço e amor à camisola.
Pelas instalações dos Bombeiros Voluntários há relatos que contam histórias dramáticas, momentos de exaustão e pequenas vitórias silenciosas: uma vida salva, uma casa protegida, um obrigado dito entre lágrimas.
Marta Paiva, de 35 anos, é um desses rostos. Voluntária há 16 anos, carrega no olhar as memórias de um serviço que exige muito mais do que preparação física: exige vontade. A bombeira refere que “todos os dias é um dia diferente, a gente apanha de tudo, todas as situações e mais alguma, mas no fim dá para uma pessoa rir, outras vezes não”. Mesmo habituada ao calor das chamas, o fogo não deixa de causar medo, mas é nos amigos, na família e nas vítimas, que procura forças para aguentar.
“Uma das experiências um bocadinho mais stressantes foi ficar completamente cercada pelo fogo, é uma das piores sensações que uma pessoa pode passar, são segundos em que vemos a nossa vida a andar para trás e faz-nos pensar seriamente o que estamos ali a fazer”, diz Marta Paiva.
Dificuldades sentidas
Num meio onde as ajudas financeiras ainda são poucas, Marta Paiva lamenta a falta de condições básicas, especialmente no que toca ao fardamento. “Gostávamos de ter não sei quantos pares de casacos para nos proteger, mas, infelizmente, muita gente só nos dá valor quando precisam e ainda não nos conseguem ver como uma dita profissão de risco,” refere.
Ana Sousa, de 26 anos, bombeira de segunda, também aponta que a corporação de Bombeiros Voluntários de São Pedro do Sul enfrenta uma realidade dura: poucos recursos, falta de carros e cada vez menos voluntários, porque “pensam que é uma coisa e acaba por ser outra, só fica cá mesmo quem gosta, quem tem amor por isto,” confessa a profissional, que por influência de familiares na área tem o sonho de ajudar quem precisa desde pequena.
No meio de tantos episódios vividos pela voluntária, é impossível não destacar o mais recente: os incêndios de setembro de 2024, onde desempenhou a função de motorista, o que lhe permitiu manter alguma tranquilidade, mas recorda, com emoção, os colegas que choraram horas a fio, o desespero causado pela falta de comunicação entre equipas e a exaustão extrema, confessando que numa semana inteira só conseguiu dormir três horas.
“Não conseguem compreender que o mais importante é a vida deles e não os pinhais, porque eles só se preocupam em limpar os pinhais quando eles já estão a arder e totalmente domados pelas chamas, isso aí não tem grande hipótese. E é isso, vida de bombeiro não é fácil, há dias em que é fácil, há dias em que é difícil, é sempre imprevisível, nós não conseguimos prever, se prevíssemos ganhávamos o euromilhões”, conclui Ana Sousa.
Coordenar, apoiar e agir
Por trás desta corporação está Otelina Oliveira de 52 anos, subchefe desde 2005, que entrou para os bombeiros por influência do ex-marido, também ele bombeiro, que acabou por lhe despertar a paixão por esta missão de vida. A subchefe confessa que o caminho até ao posto que ocupa hoje foi tudo menos fácil, uma vez que teve de percorrer todas as etapas com esforço, entre formações exigentes a sacrifícios pessoais. Otelina Oliveira revela que gostava de ser chefe, mas a sua rotina não lhe permite, porque trabalha num serviço de urgências no hospital. “A minha rotina é sair do hospital e ir para os bombeiros e depois sair dos bombeiros e ir para o hospital,” revela a subchefe.
Os bombeiros tiram-lhe horas de descanso, momentos com a família e tempo para si própria, mas a paixão fala mais alto. No verão, Otelina Oliveira integra a equipa de primeira intervenção e relembra que os incêndios do ano passado foram, para si, um momento muito marcante na carreira, talvez por ainda estarem tão presentes na memória.
“Passei algumas dificuldades nesse incêndio, chorei muito com os meus colegas, foi muito complicado porque não tínhamos meios suficientes para combater as chamas, porque estava a arder por muitos lados e os bombeiros não chegavam para combater os incêndios. Todos os bombeiros estiveram nesse teatro de operações e eu, como subchefe, tenho alguma responsabilidade com a equipa que costuma estar comigo, tenho de ter atenção à pessoa que vai combater as chamas, a pessoa que está à frente e à restante equipa também”, lembra a subchefe.
Amor à camisola
Embora muitos conciliem a profissão com o voluntariado, há também quem, mesmo sem emprego fixo, escolha entregar-se a esta vida. É o caso de João Martins de 39 anos, bombeiro de primeira desde 2012, que vê no quartel um propósito. “Já vi de tudo ao longo dos anos, há sempre histórias que marcam, mas os incêndios são os que deixam cicatrizes mais fundas, são situações de risco extremo”, partilha o bombeiro.
Num país onde o reconhecimento por vezes falha e os recursos são limitados, estes homens e mulheres continuam a vestir a coragem todos os dias. Fazem-no por amor, por vocação, por um sentido que nem sempre se compreende, mas que se sente em cada chamada atendida, em cada lágrima contida, em cada vida que é salva. Talvez os apoios nunca venham a ser suficientes, assim como todas as palavras de gratidão, mas têm entre si o mais importante, a força de vontade de ajudar o outro, mesmo em tempos difíceis e é isso, por si só, que mantém este quartel, e tantos outros de pé.