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Em Viseu há um dos três únicos cemitérios muçulmanos do país, templos hindus que vivem da partilha, igrejas evangélicas em ruas de diversão noturna e uma paróquia que faz da ajuda um ato cultural. Numa cidade onde a diversidade religiosa espelha a realidade nacional, a fé é a primeira linha de apoio para quem chega sem nada e a esperança para quem precisa recomeçar.
Portugal é laico diz a Constituição. E ainda assim, é impossível negar que a alma deste país pulsa ao ritmo das igrejas e das procissões. Os dados dos Censos de 2021 contam que em Portugal, dos quase 8,8 milhões de residentes com 15 ou mais anos, cerca de 7 milhões identificam-se como católicos, aproximadamente 187 mil como evangélicos, quase 20 mil como hindus e cerca de 36 mil como muçulmanos.
No concelho de Viseu dos 83 526 residentes com 15 ou mais anos, quase 73 mil dizem-se católicos.
Mas entre essas vozes há outras que também se fazem ouvir. Cerca de 1 400 pessoas identificam-se como evangélicas, enquanto que as comunidades hindus e muçulmanas, embora em menor número, estão presentes, com algumas dezenas de fiéis.
Estes locais passam, muitas vezes, despercebidos a quem vive na cidade. Estão escondidos em centros comerciais semi-vazios, garagens ou ruas de diversão noturna. E, no entanto, é ali que muitos encontram a primeira ajuda para recomeçar.
O Jornal do Centro foi ouvir estas vozes para perceber como a religião pode servir como uma muleta de apoio e integração.
O apoio que já se espera: a Igreja como instituição
Na Igreja Paróquial de São José em Viseu, a fé não se esgota nos cânticos ou nas velas acesas. O Padre José Morujão explica que “a Igreja preocupou-se sempre com as pessoas mais frágeis, seja na parte económica ou na saúde.”
O Centro Social Paroquial de São José, o Banco Alimentar e a Conferência de São Vicente de Paulo são estruturas que se erguem para apoiar quem chega com pouco e sai com esperança renovada. “Temos um grupo de pessoas dedicadas a ajudar quem mais precisa. O apoio é sobretudo material, mas também apoiamos no pagamento da renda, ajudamos a resolver problemas, e até facilitamos o acesso a serviços do Estado e outras instituições”, partilha o padre.
E no entanto, o trabalho nunca termina. Para o padre José, “há mais gente a pedir ajuda, mesmo que haja menos pobreza, porque os meios oficiais existem. Ainda assim, há sempre quem bata à porta.”
O pároco sabe que a pobreza não tem fim, mas também sabe que a fé nasce da partilha. “É natural que as instituições religiosas estejam abertas a estas necessidades, porque a caridade e a solidariedade são parte essencial da fé. Claro que isto não resolve todos os problemas, porque como Jesus dizia, pobres sempre haverá”.
Se na Igreja Católica o apoio é quase esperado, noutros espaços a fé sobrevive longe do altar escondida entre lojas vazias e corredores esquecidos.
Mesquita de Viseu: Fé num centro comercial quase sem lojas
No terceiro andar do Centro Comercial Académico, no coração da cidade, a mesquita de Viseu é um segredo quase invisível entre as poucas lojas do espaço.
Poucos saberão que ali se reza e que ali também se dorme, quando não há outro lugar.
O imã Erfan Abazid, que trocou a Síria por Portugal há mais de 20 anos, conta que a mesquita fundada há duas décadas é frequentada por “portugueses, mas a maioria vem de África principalmente marroquinos, argelinos, egípcios.”
Mais do que um local de oração, a mesquita assegura apoio concreto a quem chega ao país sem saber onde dormir ou como começar. “Quando chega alguém, ajudamos a tratar de documentos, arranjar um lugar para ficar, encontrar trabalho, e explicamos como funciona a vida em Portugal.”
E quando não há quartos ou camas, há sempre um espaço para descansar a cabeça. “Se chega alguém à tarde e não há quartos disponíveis, pode ficar aqui a dormir até conseguirmos arranjar uma solução. Antigamente tínhamos quartos, mas agora já não.”
O apoio da mesquita estende-se até aos que partem. “Em 2017, com o apoio da Câmara Municipal de Viseu, inaugurámos o segundo cemitério muçulmano em Portugal.” conta Erfan, com um misto de orgulho e gratidão.
Para o fundador da mesquita, este é um gesto que transcende o momento: uma garantia de dignidade mesmo no fim do caminho. “Foi um momento importante. Pedimos o apoio e a Câmara ajudou. O primeiro cemitério foi em Lisboa, e o nosso foi o segundo. O Porto, que tem uma comunidade maior e várias mesquitas, e mesmo assim, só abriu o cemitério em 2024, quase dez anos depois.”
Templo Bhakti Marga: Um templo discreto com gestos que contam
Mais a sul da mesquita, existe o templo Radha Ras Bihari, do movimento Bhakti Marga, ondeespiritualidade assume a forma de partilha. A coordenadora Fátima Santos descreve o crescimento lento e paciente do espaço. “O templo nasceu em 2010 e tem crescido desde então. Aos poucos foram chegando mais divindades para o altar. O templo como o conhece hoje tem já dez anos.”
Ali, a fé não se fica pelos rituais. “Já fizemos várias ações, como doação de donativos e comida, e até limpezas das matas, queremos que as pessoas conheçam e se inspirem na nossa devoção.”
É um lugar onde cabem muitos sotaques e cores. “Aqui entram pessoas de várias nacionalidades,indianos, brasileiros, ucranianos. Sempre foi um espaço aberto a todos.”
Mas, nos últimos anos, a realidade bate à porta com urgência. “Hoje vemos muitos que não têm onde dormir ou comer, algo que antes não era tão comum,” lamenta Fátima.
E, ainda assim, ela acredita que a comunidade é mais forte quando se apoia mutuamente. “Ajudamo-nos e inspiramo-nos mutuamente. É isso que nos faz crescer como comunidade e como pessoas.”
No templo, como resume o lema da Bhakti Marga, há uma certeza: “Paciência, amor e união.”
Igreja Evangélica Redentora de Cristo: Luz na rua de diversão noturna
Na rua dos bares noturnos, ergue-se a Igreja Evangélica Redentora de Cristo. Foi ali que a reportagem foi recebida para um pequeno-almoço, seguido do estudo da Bíblia. Durante esse momento, foi possível ver uma família que não pertencia à igreja a ir buscar mantimentos e roupas.
O pastor Rogério da Almeida, ministro de culto da igreja, explica que a ajuda não conhece fronteiras religiosas. “Nós recolhemos roupas e alimentos doados pelos irmãos da igreja e distribuímos a quem precisa.”
Muitos chegam apenas com uma mala e coragem para recomeçar. “Muitas pessoas chegam do Brasil, Guiné-Bissau, Angola, só com uma mala de roupa. Aqui damos algum subsídio para ajudar.”
Mas a ajuda não fica no que se vê. “Temos também grupos internos, como no WhatsApp, onde partilhamos informações sobre documentos, trabalho e habitação. É uma rede de apoio.”
O pastor fala da comunidade como quem fala de uma família que se escolhe. “Quando saímos do nosso país, não temos família nem apoio. A fé é essa família que substituímos.”
A localização da igreja também não é indiferente. “Esta rua é conhecida pelos prostíbulos e bares noturnos. Existem uns dois casos ativos em que as pessoas deixaram o estabelecimento onde trabalhavam, os prostíbulos, e encontraram família e hoje vivem com as suas famílias numa vida diferente do que tinham no passado.”
Religião como uma linha de integração
As igrejas, mesquitas, templos e outros espaços de culto acabam por ser refúgios que acolhem e promovem um compromisso diário com as pessoas. Num contexto em que muitas vezes os corredores administrativos perdem-se em falhas e lentidão burocráticas, são estas comunidades religiosas que se chegam à frente e preenchem lacunas, funcionando como uma rede de segurança social.
Num país de Estado laico, a fé permanece, para muitos, o pilar fundamental de integração, pertencimento e dignidade.