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Pedro Coutinho

25 de 04 de 2024, 10:28

Colunistas

Abril em tua casa de uma vez por todas

Vivi entalado entre as memórias contadas da guerra colonial e as vivências de um mundo novo de liberdade. Vivi entalado entre as memórias contadas dos horrores do Estado Novo e a necessidade de construir uma nova realidade com paz, pão, saúde, habitação, educação

pedro coutinho

Bem sei que o problema da ascensão dos populismos é mundial. Trump, Bolsonaro, Orbán, Meloni, Putin e outros líderes com práticas xenófobas e autoritárias são um problema mundial. Sei que o problema da habitação é mundial. O problema da inflação é mundial. As preocupações com as tensões da multiculturalidade são mundiais... são temas estudados na academia e já fazem parte do nosso quotidiano. Não se resolvem rapidamente, nem tal promessa deveria existir.
Ainda assim, o caminho português não precisa de ser o mesmo que levou aqueles personagens ao poder. Penso que, para além do que temos em comum, temos outros problemas muito nossos, como uma incapacidade crónica e endógena para o autoconhecimento. Creio que deveria ser aí o grande foco da nossa atuação coletiva.
Por um lado, a cultura portuguesa é extraordinária em enaltecer romanticamente os feitos mitificados de um passado longínquo, reinventando e branqueando séculos de escravatura e de cultura colonialista. Por outro lado, insistimos em não perceber o trajeto incrível e maravilhoso que percorremos nos últimos 50 anos. Há uma espécie de transtorno que permanece; uma crença sombria num discurso do “só neste país” e do “antes é que era”, apesar de nunca termos vivido tão bem como hoje. Claro que, se insistirmos no discurso medieval, nunca veremos a realidade objetiva e ficaremos sempre aprisionados numa construção narrativa de horror e de medo.
Acredito que é chegada a altura de um novo processo: a catarse da minha geração. Uma geração de gente de camisa engomadinha e unhas limpas que ainda falha em perpetuar Abril. Uma geração que pensou que a democracia era um dado adquirido e que tem esquecido as lições dos seus pais. Foi a primeira geração a nascer em democracia e tem-se esquecido de o contar aos seus filhos…
Sou filho do PREC e sou dessa geração de pais dos novos eleitores de 2024 e questiono-me sobre o que andámos a fazer nestes últimos 50 anos. Por vezes, sinto necessidade de me desculpar aos meus pais quando vejo adultos de 20 anos que não sabem o que foi Abril e que acham que o Estado Novo até nem foi assim tão mau… Percebam: a ausência de liberdade será sempre má. Sobretudo para quem pensa e tenta ser melhor.
Vivi entalado entre as memórias contadas da guerra colonial e as vivências de um mundo novo de liberdade. Vivi entalado entre as memórias contadas dos horrores do Estado Novo e a necessidade de construir uma nova realidade com paz, pão, saúde, habitação, educação. Vivi perturbado com a ideia de que um país inteiro conseguia permitir que algumas dezenas de indivíduos claramente maus pudessem comandar milhões.
Em 2000, em conversa com Iva Delgado, filha do General Humberto Delgado, pude perguntar-lhe qual a sua explicação para tantos anos de ditadura e de aceitação tácita de tantos milhares de portugueses. Ela respondeu-me sabiamente que a liberdade é pesada e que nem todos acreditam poder lidar com esse peso. A possibilidade de sermos responsáveis pelas nossas escolhas é pesada e será sempre mais fácil dizer que a responsabilidade é do sistema.
Pois bem, o sistema português é aquele que nasceu de cravos e de um esforço para ser melhor. Não nasceu da perfeição, mas do erro e do esforço de melhorar. O PREC teve problemas e a democracia também, com lutas constantes por uma vida melhor entre programas do Herman José censurados e propostas de leis da rolha. Mas é certo que temos conseguido que este canto do mundo seja cada vez mais humano e confortável. Tão confortável que temos hoje centenas de milhares de estrangeiros que para aqui quiseram vir graças à qualidade de vida que temos. Devíamos estar orgulhosos deste caminho esforçado. Sobretudo, devíamos aceitar que o caminho não acaba, havendo sempre novos desafios que nos obrigam a ser sempre melhores e não piores. Não há desculpa para sermos piores, para sermos xenófobos ou intolerantes.
Este é o ano 50 da Revolução. A Revolução de um dia claro que tentou repudiar a violência. Neste ano marcante, houve uma geração de novos votantes que revelaram um profundo desconhecimento da história da nossa democracia e que deram o braço a quem apela à violência contra os que mais precisam… Falo sobretudo dos eleitores jovens de uma pretensa classe média (ou abaixo disso) que se reveem na ideia alucinada de que a direita xenófoba os irá beneficiar. São eleitores que se reveem na ideia de que há uns melhores do que outros... São eleitores que não percebem que não há soluções mágicas, mas caminhos esforçados em conjunto, com debates acesos e respeito democrático.
O meu Abril será sempre a Revolução onde repudiamos a violência e o ódio. Essa será a diferença entre os exemplos do mundo e o nosso Portugal: a nossa herança de um Abril esforçado no amor, acreditando num mundo de todos. Esta é altura para o contarem aos vossos filhos. Sentem-nos à mesa e contem-no. Hoje.