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Gabriel Mondina
A União Europeia nasceu do trauma da guerra, não para prolongar o jogo geopolítico das armas, mas para lhe pôr fim. Fundou-se na promessa de paz, solidariedade e primado do Direito: pilares que, durante décadas, lhe conferiram uma autoridade moral sem paralelo no mundo. Hoje, esse edifício vacila. O continente que outrora ergueu tratados em vez de trincheiras, e que fez da cooperação multilateral o seu desígnio fundador, ensaia agora um regresso inquietante ao léxico bélico. Não por imperativo existencial, mas por impulso defensivo. E, sobretudo, por fuga: fuga à ideia de Europa, à coragem política, à sua própria memória.
Num cenário em que as maiores economias da União, como Alemanha, França e Itália, registam crescimentos anémicos — inferiores não apenas aos “tigres asiáticos”, mas até à própria Rússia, mergulhada numa guerra prolongada e sob sanções severas — esperar- se-ia um redobrado investimento europeu na produtividade, na inovação e na coesão social. Seria lógico. Mas não é o que acontece. A resposta dominante é outra: multiplicar orçamentos militares, expandir a indústria bélica e lançar-se numa corrida ao armamento tão dispendiosa quanto estruturalmente estéril. Esta inversão de prioridades é economicamente comprometedora, estrategicamente míope e moralmente devastadora.
Portugal é um caso paradigmático da irracionalidade orçamental em curso. Cumprir a meta dos 2% do PIB implicaria duplicar a atual despesa em defesa, de cerca de 3 mil milhões para mais de 6,4 mil milhões de euros anuais. Se a fasquia for elevada para 5%, como alguns já defendem, o esforço orçamental tornar-se-ia colossal. Trata-se de um montante suficiente para financiar programas nacionais de habitação, modernizar hospitais, construir centenas de escolas ou aliviar a carga fiscal sobre os mais jovens. E, ainda assim, o debate público permanece marcado por uma omissão inquietante: os mesmos partidos que prometem aumentos sustentados nas pensões e reforço do Estado social recusam explicar como pretendem compatibilizar tais objetivos com uma duplicação, ou mesmo triplicação, da despesa em defesa. A escolha é brutal, mas clara: ou se financiam tanques, ou se investe em vidas. Não há “canhões grátis”, como bem assinala Vital Moreira. E como advertiu Janan Ganesh, “para construir o warfare State, é preciso destruir o welfare State”. A despesa militar tem custos sociais diretos; e as vítimas não serão apenas as finanças públicas, mas as pessoas, em especial as mais vulneráveis. E como consequência inevitável, será atingido o próprio contrato social europeu.
Perante o impasse orçamental de muitos Estados-Membros, alguns líderes europeus ensaiam soluções que contornem os atuais limites fiscais: excluir a despesa militar do cálculo do défice ou recorrer ao endividamento direto da própria União. Mas ambas as propostas enfrentam sérios obstáculos jurídicos e institucionais. A primeira pode aliviarmomentaneamente os saldos nacionais, mas não elimina o impacto nos rácios de dívida pública, que continuam a ser, desde Maastricht, o verdadeiro critério de vigilância macroeconómica. A segunda, que consiste em mutualizar dívida militar à escala europeia, colide com o princípio da legalidade orçamental consagrado no artigo 311.º do TFUE e entra em tensão direta com a proibição expressa do artigo 41.º, n.º 2, do Tratado da União Europeia, que impede o financiamento de operações com implicações militares através do orçamento comum. Em termos simples: financiar a guerra exigirá desmantelar pilares essenciais da União. Cortes profundos na política de coesão, na política agrícola comum ou nos fundos de transição ecológica serão quase inevitáveis. E essa erosão estrutural não resulta de erro, mas de escolha política deliberada.
Os defensores da escalada apontam frequentemente para a erosão do compromisso norte-americano com a NATO, para a urgência do burden-sharing entre aliados europeus ou para alegadas lacunas de capacidade operacional na defesa comum. Mas nenhuma dessas razões, por mais legítimas que pareçam, justifica uma duplicação orçamental abrupta, ancorada em dívida e financiada à custa do Estado social. Se a autonomia estratégica europeia for para ser construída, deverá assentar em responsabilidade democrática, equilíbrio intergeracional e memória institucional; não num mimetismo apressado do modelo securitário norte-americano. A independência não se mede pelo número de caças comprados, mas pela capacidade de afirmar um modelo próprio de segurança que não reproduza os vícios do medo transformado em doutrina.
A “ameaça russa” tornou-se, hoje, menos um imperativo estratégico e mais uma alavanca retórica ao serviço de agendas securitárias internas. Isso não significa ignorar as legítimas apreensões dos Estados-Membros expostos à fronteira oriental, cujas memórias históricas estão marcadas por ocupações, repressão e dependência forçada.
Mas reconhecer essas vulnerabilidades não justifica uma inversão total das prioridades da União. Mesmo sem o apoio direto dos Estados Unidos, do Canadá ou da Turquia, os países europeus da NATO dispõem de forças superiores em número, orçamento e tecnologia face à Rússia, cujo esforço de guerra tem sido sustentado por mobilização forçada, perdas humanas massivas e um arsenal tecnologicamente inferior. A pergunta impõe-se: se a dissuasão já é viável com os meios atuais, por que insistir em duplicar os orçamentos de defesa? A resposta não é técnica, é ideológica. O que se observa não é mobilização popular, mas resignação institucional. Não é convicção cívica, mas gestão emocional do medo.
O impulso para a militarização não nasce da sociedade europeia; nasce do topo, de uma elite política capturada por lógicas securitárias e por uma indústria de defesa cada vez mais poderosa, dependente de contratos públicos bilionários. Esta não é uma resposta à ameaça externa: é uma captura silenciosa do projeto europeu por interesses internos.
De Berlim a Lisboa, políticos de esquerda e de direita repetem que é preciso “estar à altura do momento histórico”. Mas poucos parecem compreender o verdadeiro significado dessa exigência. Estar à altura da História não é ceder à lógica de confronto que devastou a Europa no século XX; é superá-la com coragem, com lucidez e com fidelidade à sua memória fundadora. É recusar o curto-circuito entre medo e belicismo.
Ao hipotecarem o investimento público, o Estado social e a solidariedade intergeracional, os líderes europeus não estão a proteger o projeto europeu: estão a traí-lo. Estão a desfigurá-lo para que se pareça mais com aquilo de que, outrora, a Europa jurou fugir. E fazem-no em nome da História, mas contra a própria consciência histórica. Este não é o caminho da paz duradoura; é o triunfo do desespero revestido de pragmatismo.
Se a União Europeia persistir neste rumo, não precisará de inimigos externos para ser desfeita. Será corroída por dentro, não por falta de meios militares, mas pela perda progressiva da sua legitimidade moral, da sua coesão social e da sua memória fundadora. Nenhuma civilização se defende sacrificando aquilo que a tornava digna de ser defendida. A verdadeira segurança não nasce da dissuasão armada, mas da confiança entre gerações, da justiça redistributiva e de uma democracia que não tema olhar-se ao espelho. A ameaça existencial da Europa não está nas suas fronteiras: está na sua crescente incapacidade de lembrar quem é e de ter a coragem política de continuar a sê-lo.
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Helena Barbosa
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Filipe André