Autor

Joaquim Alexandre Rodrigues

11 de 06 de 2022, 08:43

Colunistas

Escaqueirar tudo

Políticos a meterem o bedelho em filmes

O que se seguiu ao 25 de Abril de 1974 foi uma felicidade, um deslumbre e um desenrascanço. Veja-se este exemplo: só foram precisos quatro dias para que uma comissão de cineastas fizesse a ocupação do Instituto Português de Cinema e tratasse da “abolição da censura aos filmes e a sua substituição por uma comissão ad hoc para os espectáculos”. Na altura, era assim, desta forma expedita, que se resolviam os vazios de poder.
Aquela comissão fez um bom trabalho, estabeleceu uma classificação com quatro categorias etárias para os filmes, que foi vertida em lei logo em 20 de Junho. E, alegria das alegrias, os cinemas começaram a passar tudo, em liberdade e variedade. Dentro das salas escuras, nenhum sobressalto. Nas ruas, festa, cacofonia, “o-povo-unido-jamais-será-vencido”. Foi o chamado “processo revolucionário em curso”. Na gíria, PREC.

Paulo Cunha e Maria do Carmo Piçarra, num trabalho intitulado “Censura, Nunca Mais? Estudos de Caso Durante o PREC”, contam dois episódios em que houve políticos a meter o bedelho na exibição de filmes.
O primeiro caso aconteceu com “Sambizanga”, da militante do MPLA Sarah Moldoror, uma adaptação de “A Vida Verdadeira de Domingos Xavier”, de Luandino Vieira. A estreia esteve marcada para 20 de Setembro de 1974 mas o gabinete do primeiro-ministro Vasco Gonçalves exigiu um adiamento porque era necessário, cito, “impedir manobras da reacção” e por o filme ser “propaganda de um dos movimentos emancipalistas, ainda em guerra”. O filme acabou por ser exibido cinco semanas depois.
O segundo caso passou-se com o perturbante “Saló ou 120 Dias de Sodoma”, de Pier Paolo Pasolini, que era para estrear na primavera de 1976 não fora o ministro Almeida Santos ter engalinhado com ele: “enquanto aqui estiver, o filme não será exibido.” E a distribuidora guardou o celulóide na arrecadação. A sorte é que, então, os governos duravam pouco. Pouco depois a tutela do cinema passou para Manuel Alegre e “Saló” ante-estreou no Festival de Cinema da Figueira da Foz, em 1 de Setembro, e no dia seguinte foi lançado em Lisboa, embora, contra o costume, com uma publicidade púdica, sem imagens.

Acabado o PREC e arrefecidas as paixões políticas, só houve, que se saiba, mais um caso destes, com o muito contestado pelos sectores integristas católicos “Eu Vos Saúdo, Maria”, de Jean-Luc Godard.
Quando se soube que a Cinemateca Portuguesa o ia dar a ver no dia 29 de Junho de 1985, o então presidente da câmara de Lisboa, o centrista Nuno Krus Abecasis, ameaçou ir lá “escaqueirar tudo”.
No dia aprazado, apareceu mesmo lá uma trupe beata para sabotar a projecção. Foi um filme antes do filme. Elisabete França, numa reportagem deliciosa no Expresso, contou que “um deles, de rojo, evocava o transe místico, rangendo os dentes e rezando Avé-Marias.” O próprio Abecasis apareceu também, depois de um bom e regado jantar, mas, mais empurrão menos empurrão, lá se fez a projecção direitinha daquela história de uma Maria que trabalhava num posto de gasolina e namorava um taxista chamado José que ficou esquinado quando ela apareceu grávida.

Em 48 anos de democracia, só dois pequenos adiamentos e uma sabotagem falhada. Nada mau.
Infelizmente, as coisas vão piorar, a moda dos cancelamentos iniciada nos Estados Unidos também vai cá chegar. E, já se sabe, tanto os identitários de esquerda (mais conhecidos por “wokes”) como os de direita (mais conhecidos por “fachos”) amam a sua liberdade de expressão mas odeiam a liberdade de expressão dos outros.