Autor

David Duarte

18 de 06 de 2022, 07:52

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 14 Outubro 1981

Politicamente, continuo a considerar o socialismo democrático a alternativa mais séria de se reformar a sociedade

Terminei a leitura do segundo volume do «Jean Christophe»; é um prazer acompanhar a narrativa de vida deste personagem, ajuda-me a refletir sobre alguns traços do meu comportamento, incentiva-me a não desistir, a não ceder a tudo, a dizer não ao comodismo e ao fácil. A leitura de alguns livros desperta-me da modorra, alarga-me o horizonte cognitivo.
        Quem sou eu? Uma pessoa razoável, sonhadora, que vive mais por dentro de si próprio do que na materialidade do tempo. Estudante de filosofia, sobretudo interessado no estudo de si próprio mais que na acumulação do saber. Sem grande calo de experiências, mas calejado de sonhos e mistérios. Ambições políticas ou sociais não me alimentam. Pretendo tão só acabar o curso e dar aulas com empenho, sabendo que não poderei alterar o curso do ensino ou do mundo.
        Esforço-me por manter uma certa distância em relação às paixões do mundo, querendo assim criar um estado de espírito sereno mas atento. Esforço-me por defender a minha independência para poder viver as dimensões de plenitude da vida.
        Politicamente, continuo a considerar o socialismo democrático a alternativa mais séria de se reformar a sociedade, mas não ponho nisso muita paixão, pois os absolutos não existem e a condição humana não permite ilusões. A nível religioso, reconheço-me com uma tendência mística, mesmo quando não creio. Não busco nenhuma experiência religiosa extraordinária, mas existem palavras e narrativas que me emocionam, me comovem, me aprofundam. Soluções definitivas para a questão da existência de Deus são utopias sempre adiadas.
        Desejo deixar de comparar tanto as coisas com padrões absolutos, o que me tem impedido de viver mais o presente.
Vivo concentrado no meu amor. O resto é insignificante ao nível mais ontológico da vida. Entretanto, há coisas a fazer, e eu faço-as. Alimento-me, leio, medito, corro, convivo, estudo, ouço música. Mas a essência da vida identifico-a com o amor pela Fátima.
Sei que os demónios interiores, entretanto adormecidos, voltarão a rasgar a alma. Que a melancolia me acompanhará, mais latente ou mais latejante. Que o impulso sensual me acordará de noite com as suas exigências. Que, pelas ruas da cidade, pelos bancos da faculdade, farejarei o perfume de uma mulher apetecível. Sei de tudo isto. Mas há agora uma verdade a sustentar-me no fio da navalha.