Autor

David Duarte

15 de 10 de 2021, 16:14

Colunistas

Fragmentos de um Diário - 28 de Agosto de 1978

A carta que escrevi, foi ao lume do pudor que me sobrou

 “Cartas de amor são sempre ridículas”. Acabo de escrever uma. Sinto-me ridículo, mas sorrio, sorrio e choro. Uma carta que nunca chegará à destinatária, algures em terras francesas ou suíças, a fazer pela vida, com o pensamento na família. Talvez reserve um lugarzinho para mim no largo mar do seu coração. Que tipo de sentimentos ainda alimentará? Meu Deus! E eu aqui, sem saber de nada, sem poder fazer nada!      

Há dias, numa noite, no pátio de uma casa de aldeia, um grupo de jovens: Uma delas fazia anos e comemorávamos o aniversário. Às tantas brincou-se ao jogo da verdade e fiquei a saber que a aniversariante gostava de mim. Ela é uma jovem bonita, de olhos claros e os cabelos quase loiros. Mas, por enquanto, ainda um pouco superficial, sem pensamento. Desde há muito que há qualquer coisa entre nós, no olhar, nos sorrisos, em certas palavras, num certo silêncio. Talvez tudo se esgote numa mera atração física. Imaginei uma carícia na sua pele. Um beijo, também. E foi o que lhe pedi, quando os outros se dispersaram em outros jogos e interesses. Sem dar nas vistas, recuámos até ao escuro do quintal. As laranjeiras pareciam adormecidas, a terra do caminho amaciava os nossos passos que nos levaram à beira de um tanque quase a transbordar de água.

Não falávamos. Mas sabíamos que a inocência não pautava os impulsos da nossa presença ali, afastados dos outros. Ela aceitou pacificamente que lhe acarinhasse a pele dos braços, que as minhas mãos se aventurassem por baixo da blusa, se aproximassem dos seios. Tomou ela a iniciativa de desapertar o fecho do soutien, que recolheu num dos bolsos das calças. Esta liberalidade libertou-me o desejo dos lábios, que arderam no calor do seu corpo. Foi tudo muito bom, muito silencioso, só eu e ela iluminados pela luz das estrelas e a luz dos sentidos. Por mim ficaria ali até ao fim da noite. Mas alguém, de repente, se lembrou de nós, chamou-nos, e tivemos que interromper o diálogo dos nossos desejos.
A carta que escrevi, foi ao lume do pudor que me sobrou.