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por
Carlos Vieira
O Cine Clube de Viseu (CCV) nasceu em 1955, precisamente no mesmo ano em que também eu fui projetado na tela do tempo, protagonista de um filme com produção e argumento dos meus pais, talvez influenciados pelas fitas românticas que iam ver no Avenida Teatro. Creio ter-me desviado do guião, mas já não terei tempo para fazer um “remake” mais aprimorado. Este ano, também eu comemoro os 70 anos de um plano-sequência, numa longa metragem ainda em rodagem, onde certamente o CCV surgirá destacado nos créditos finais.
O movimento cineclubista irrompeu em Portugal nos anos 40 do séculos XX, em plena ditadura salazarista, pela vontade de cinéfilos que encaravam o cinema não apenas como uma forma de entretenimento, de consumo passivo da 7ª Arte, mas sobretudo como uma forma de arte intrinsecamente inserida num movimento cultural progressista que não se compaginava com os atavismos conservadores e anacrónicos do Estado Novo, pelo que rapidamente se tornou num movimento de resistência política. Nos anos 50 já havia em Portugal cerca de meia centena de cineclubes, tendo alguns, por exibirem na íntegra filmes censurados ou proibidos, sido encerrados pela PIDE.
Em Viseu, o Cine Clube foi fruto da vontade de um grupo de cinéfilos, com destaque para Humberto Liz, a cuja tenacidade inquebrantável se deve a persistência do CCV, apesar das agruras e dificuldades provocadas pelo aparecimento, logo em 1956, das primeiras emissões experimentais da Radiotelevisão Portuguesa (que Eduardo Geada classificou como um organismo oficial de propaganda e alienação, “que pouco ou nada favoreceu as relações produtivas entre o cinema e a televisão, chegando mesmo a proibir alguns realizadores e intelectuais da oposição de colaborarem na sua programação, situação que só foi alterada depois do 25 de Abril”). Quatro anos depois do advento da TV em Portugal, o Teatro Viriato fechou as portas e no ano seguinte o Avenida Teatro também encerrou definitivamente. Em ambos os teatros o cinema era o “prato principal”.
No final dos anos 50 e durante mais de uma década, as restrições de exclusividade impostas pelos “grandes conglomerados americanos de produção e distribuição” com participação no capital das sociedades portuguesas “(caso de Filmes Castelo Lopes e Lusomundo)” tornam “cada vez mais difícil a estreia dos poucos filmes portugueses que, apesar das pseudo proteções legais, chegam a ficar meses e anos nas prateleiras dos distribuidores, mais interessados na mercadoria internacional, a ponto de muitas vezes preferirem arruinar voluntariamente a exibição de um filme português e perder dinheiro, para depois tentarem provar, com números, a fatalidade congénita do filme nacional, de que eles seriam afinal as primeiras vítimas.” (Eduardo Geada, “O Imperialismo e o Fascismo no Cinema”, Moraes Editores, 1976). Em Dezembro de 1967, o Cineclube do Porto organizou a Semana do Novo Cinema Português, durante a qual surgiu “um documento subscrito por jovens cineastas e dirigido à Fundação Calouste Gulbenkian propondo a criação de um Centro de Cinema”, onde alguns deles puderam dirigir a sua primeira longa-metragem, com o mecenato da Gulbenkian. O movimento cineclubista, onde se inscreveu o CCV, teve um papel decisivo na formação de públicos refractários à programação das salas de projecção do cinema importado sem critérios de qualidade.
Inserida nas comemorações dos 70 anos do Cine Clube de Viseu, a exposição documental patente na Casa da Ribeira até 17 de Janeiro de 2026, inaugurada no passado 17 de Outubro, com a presença de muitos sócios e membros dos corpos sociais, foi apresentada pelos seus coordenadores, Joaquim Alexandre Rodrigues (autor dos textos), José Fernandes e Rodrigo Francisco (coordenador-geral do CCV). Beneficiou ainda dos vídeos de Nuno Tudela, Carla Augusto e João Oliveira, do design gráfico de Miguel R. Cardoso e do apoio à produção de Carla Augusto e José Pedro Pinto.
A exposição está bem organizada em quatro períodos:
Período 1 (1955-59): o CCV organizou 66 sessões de 35mm, com sessões infantis, textos de apoio, palestras e a presença de realizadores. “Em 1959, a “vil mecânica” monopolista que detinha o controlo da exibição cinematográfica em Viseu começou a levantar dificuldades ao CCV, obrigado-o a uma paragem de mais de onze anos por falta de máquina de projectar própria”.
Período 2 (1972-76):
“Após onze anos de paragem, recomeço, em 3 de Março de 1972, no Cine Rossio, a única sala comercial da cidade”. A Fundação Gulbenkian concede ao CCV uma máquina de projectar de 16mm. No dia 25 de Abril, após terem visto, na noite anterior, o filme de Ken Loach, “Vida em Família”, os sócios do CCV e a sua direcção rejubilaram com o “fim da longa noite fascista”.
A exposição destaca neste período a obra-prima de Sergei Eisenstein, “O Couraçado Potemkine (1925), filme proibido pela ditadura, mas que tem um lugar cimeiro na história do cinema pela unidade orgânica da sua composição, construída inteiramente pela regra do número de ouro das proporções (segundo Engels, citado por João Mário Grilo em “As Lições do Cinema”). Mas acrescenta uma observação que me parece incorrer num viés ideológico: “O filme tornou-se um fetiche da direcção do CCV e a sua exibição comercial no Cine Rossio foi mal vista pelo presidente de então. Viviam-se os “tempos da brasa” a seguir ao 25 de Abril”. Ora, no imprescindível livro de Fernando Giestas “Cine Cidade – As salas de cinema, os protagonistas e os filmes do Cine Clube de Viseu (1955-2007)”, é referido o Boletim de Maio de 1974 do CCV, onde se anunciava para breve a exibição de “O Couraçado Potemkine”, estando a Direcção do CCV a “fazer contactos para aquisição de uma cópia em 16mm”. No Boletim de Julho de 74, é publicado um comunicado da direcção do CCV, onde se refere “A recusa do distribuidor do filme “O Couraçado Potemkine” em alugá-lo ao CCV insere-se na estratégia imperialista da estrutura económica do cinema em Portugal; (…) O CCV denuncia esta manobra e alerta todos os cineclubistas da necessidade urgente da socialização dos meios de distribuição cinematográfica, criando desde já um circuito paralelo de importação e distribuição de filmes”. Este comunicado (e a distribuição de um texto de apoio ao filme durante a exibição comercial) esteve na origem do cancelamento do acordo de projecção entre a gerência do Cine Rossio e o CCV que duraria até 1978. O director, Perfeito Lopes, muda o logotipo do CCV para o desenho do Couraçado Potemkine saído no “Cahiers du Cinema”, sem comunicar à restante direcção. Apesar de ter chegado a confrontar-me, por motivos pessoais, com a sua belicosidade pouco propícia a consolidar colectivos, reconhecia-lhe o voluntarismo e a hiperatividade em prol do CCV. Apesar de não ser do seu partido (o MRPP, acabado de se cindir), fui por ele convidado para funcionário da Cooperativa Livreira ‘Que Fazer?” que funcionou na sala ao lado da sede do CCV, no Largo da Sé. Tinha passado no exame à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, mas não cheguei a inscrever-me por ter decidido começar a ganhar dinheiro para não sobrecarregar a bolsa do meu pai, modesto pequeno comerciante. Ganhava pouco, mas foi o melhor emprego que tive, rodeado de livros, muitos deles proibidos durante a ditadura. Ainda por cima, tive oportunidade de participar activamente na vida do CCV. Alguns dos boletins e comunicados deste período, patentes na exposição, foram tirados por mim num policopiador a stencil. No livro de F. Giestas são referidos algumas das sessões regulares do CCV durante esse período, “repartidas pelo Cine Rossio e pela sede”, e as sessões itinerantes no ginásio do Liceu de Nelas, na Casa do Povo de Mangualde, no Cénico de S. Pedro do Sul e ainda na Feira de S. Mateus. Recordo-me de ter projectado um filme com a máquina de 16mm, na Casa de Pessoal da Mina da Urgeiriça, por impossibilidade do projectista habitual. E também me lembro de ter batido na máquina de escrever um relatório enviado à Fundação Gulbenkian com a lista das colectividades e espaços culturais onde aquela máquina de 16mm tinha sido usada, documento que deverá estar nos arquivos do CCV.
Posso, portanto, testemunhar que, ao contrário do que foi sugerido, este não foi um “período negro”, mas antes um “período vermelho”, fruto da efémera, mas intensa, revolução popular (política, social e cultural) em que o povo português transformou o golpe de Estado militar do 25 de Abril. Só pode ser um motivo de orgulho para o CCV.
Período 3 (1978-89):
O CCV ganhou “nova vida”, regressou ao Cine Rossio. Em 1985 recebe a projectora de 35mm. Em Janeiro de 1984 inicia a publicação do boletim/revista “Argumento”.
Período 4 (1990-99)
“Nova turbulência no CCV, na primeira metade dos anos de 1990”. Humberto Liz regressa e “soube passar o testemunho a uma nova geração de dirigentes” que, sobretudo já no século XXI, como bem salientou Joaquim Alexandre, fizeram do CCV um dos agentes culturais que mais contribuem para se gostar de viver em Viseu.
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Joaquim Alexandre Rodrigues